Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Durante um dia comum de trabalho, Nicolas Bezerra, estudante de 25 anos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), recebeu uma intimação da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ).

A notificação ocorreu após ele denunciar o genocídio em Gaza por meio de seus trabalhos artísticos publicados em seu perfil no Instagram. De acordo com o registro de ocorrência nº 962-00537/2024-01, o processo move ação que caracteriza a conduta de Nicolas como “prática e incitamento de discriminação, atacando israelenses e judeus de forma clara e direta”.

O episódio teve início após uma mostra realizada na própria Escola de Belas Artes da UFRJ, no dia 8 de novembro de 2024. O evento, promovido pelos estudantes da universidade, tinha como objetivo apoiar a Palestina. Durante a atividade, Nicolas expôs cartazes em tributo às figuras da resistência assassinadas pelo exército israelense, ao povo palestino e contra o genocídio em andamento.

Em entrevista a Opera Mundi, Nicolas Bezerra relatou que, ao receber a intimação, pensou se tratar de um trote, pois o documento apresentava alguns erros gramaticais.

“Eu só percebi que era real depois de enviar uma mensagem para a investigadora da delegacia. Em seguida, procurei alguns amigos jornalistas, conversei com o pessoal da Universidade e comecei a pensar na minha defesa, não só jurídica, mas também política”, explicou o estudante, que é morador do Complexo do Alemão.

Cartaz desenhado por Nicolas Bezerra

Perseguição

Desde o início da ação, Nicolas tem enfrentado dificuldades para conseguir emprego. Antes, recebia mais convocações, mas o número de oportunidades diminuiu consideravelmente. Ele tem se apoiado em pessoas que valorizam seu trabalho e utilizou a plataforma Catarse para iniciar uma campanha de arrecadação, na tentativa de superar o momento difícil.

“Me mantenho trabalhando sem ajuda de ninguém, mas agora tenho esse apoio do Catarse, que tem fortalecido bastante minha luta para manter as atividades, principalmente as denúncias que faço, através do meu trabalho artístico, relacionadas ao sionismo e às ações das polícias nas favelas”, pontuou.

O processo tem afetado a vida de Nicolas Bezerra de diversas formas. Como morador de favela, ele afirma que as condições na comunidade são sempre mais difíceis, pois, na sua visão, “o Estado não existe para o povo”, mas quando precisam “cometer barbaridades”, eles vão até lá porque “sabem que também sairão impunes”.

“A gente sabe da ligação dos sionistas com a extrema direita e com as polícias”, desabafou.

Nicolas recorda ainda dos ataques que recebeu da jornalista Daphne Klajman, que escreve para o The Jerusalem Post. Ela publicou uma sequência de fotos no Instagram criticando a existência de um suposto “antissemitismo” no Centro Acadêmico de Belas Artes (CAEBA).

As imagens utilizadas por Klajman mostram especificamente os cartazes criados pelo artista, especialmente aqueles que homenageiam o líder palestino Yahya Sinwar e as conquistas militares dos combatentes palestinos contra as Forças Armadas de Israel. “Ela tentou criminalizar o meu trabalho porque, nas redes sociais, ela tem um grande número de seguidores dentro da extrema direita”, afirmou.

Evento na UFRJ reuniu apoiadores do estudante Nicolas Bezerra contra processo movido contra ele pela FIERJ
CAEBA UFRJ

Silêncio das instituições

Nicolas Bezerra afirmou à reportagem que ainda não recebeu apoio oficial da UFRJ, mas não descarta essa possibilidade no futuro. Embora a instituição tenha se mantido em silêncio até agora, sua defesa acredita que a situação pode mudar ao longo do processo.

O estudante destacou que a UFRJ forneceu seus dados, incluindo o histórico acadêmico, apenas após a emissão de um ofício pelo delegado responsável pela investigação. “O único problema é que essas informações ficaram expostas, mesmo sob sigilo do inquérito, ao qual tanto a instituição quanto a defesa têm acesso”, explicou.

Por outro lado, Nicolas destacou que o apoio dos estudantes tem sido importante. Uma manifestação na Escola de Belas Artes, com mais de 150 pessoas, foi um exemplo dessa mobilização. “Nas redes sociais, o apoio é unânime, com uma mobilização grande e um alcance significativo”.

O Centro Acadêmico de Belas Artes (CAEBA) também se manifestou, classificando o processo como uma “tentativa de atacar todos aqueles (as) que usam do seu trabalho, de sua arte, como forma de justiça”.

Apesar das dificuldades enfrentadas, o estudante disse estar preparado para buscar justiça. Mesmo sem nenhum vínculo familiar árabe, ele lembra que seus parentes são descendentes de camponeses do interior do país, mais precisamente de Minas Gerais.

“Eles migraram para cá na década de 60 em busca de maior estabilidade, tendo sido expulsos de suas terras, assim como os próprios palestinos, que também são camponeses. Por isso penso que essa perseguição contra mim não pode ficar impune”, concluiu.

A reportagem entrou em contato com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Escola de Belas Artes (EBA-UFRJ), a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ) e a Confederação Israelita do Brasil (CONIB). No entanto, até o fechamento desta matéria, não obtivemos respostas de nenhuma dessas instituições.

Cartaz desenhado por Nicolas Bezerra

Claudia Assaf e Breno Altman

A denúncia contra o estudante Nicolas Bezerra foi protocolada em março deste ano, mesma época em que o 3º Juizado Especial Criminal de Brasília julgou improcedente o pedido de queixa-crime apresentado pelo presidente no Brasil da organização sionista StandWithUs e ex-integrante do Exército israelense, André Lajst, contra a diplomata brasileira Claudia Assaf, imputando a ela suposto crime de injúria.

Ambos os casos, enfrentado por Claudia Assaf e Nicolas Bezerra, também guardam semelhanças com os processos impostos ao jornalista Breno Altman, fundador de Opera Mundi, que também enfrenta ações movidos pela Confederação Israelita do Brasil (CONIB) e Lajst nos quais se busca criminalizar suas opiniões contra o atual governo sionista de Israel e o genocídio em Gaza.

Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) anulou a prisão imposta ao jornalista, por atribuir as palavras “covardes” e “desqualificados” contra o economista Alexandre Schwartsman e Lajst, na esteira de críticas contra as operações militares israelenses no enclave, que já mataram mais de 49 mil palestinos.

A condenação tomada pelo juiz Fabricio Reali Zia em primeira instância determinava que o jornalista deveria cumprir três meses de prisão em regime aberto pelo crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal, e o pagamento de uma multa no valor de um salário mínimo (R$ 1.518).

Posteriormente, os três meses de detenção foram substituídos por multa de 15 salários mínimos vigentes, a serem pagas em favor do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (FUMCAD), da Prefeitura de São Paulo.