Sara, 21, jornalista em Gaza: 'Vou dormir com você porque quero morrer com você'
Diretamente da Cidade de Gaza, Sara Awad, jovem jornalista palestina, fala da fome orquestrada por Israel no enclave e do jornalismo como resistência à ocupação
Da sala de sua casa no bairro de Al Sheikh Radwan, na Cidade de Gaza, onde passou seus 21 anos de vida, a jornalista palestina Sara Awad conversou com a reportagem de Opera Mundi.
Depois de mais de 680 dias de agressão israelense à Faixa de Gaza, Sara faz parte de uma das poucas famílias que decidiram permanecer ou retornar aos seus lares apesar das seguidas ordens de evacuação emitidas pelo porta-voz israelense para a mídia árabe, Avichay Adraee. “Lembro que, no primeiro mês da guerra, eu não conseguia dormir; tinha medo de que bombardeassem e que a parede caísse, esmagando meu corpo pequeno. Nos primeiros meses, eu dormia ao lado da minha mãe, chorando. Eu disse a ela: ‘vou dormir com você porque quero morrer com você’.”
A Cidade de Gaza, a principal do enclave e situada ao norte da Faixa, tem sido alvo de ataques cada vez mais intensos desde a semana passada, quando o exército israelense anunciou o início da ‘fase preliminar’ de sua ofensiva contra a cidade. Os habitantes — incluindo Sara e sua família — se preparam para uma invasão total dos israelenses, prevista para acontecer até o próximo 7 de outubro, como afirmado por uma fonte israelense à CNN.
“Nós não levamos a mídia israelense a sério. Mas desta vez é diferente”, contou Sara à reportagem, enquanto, ao fundo, o zumbido constante de drones se misturava ao som de sirenes de ambulância. “Eu sei que se escolher ficar na minha casa, vou morrer e ninguém saberá de mim. Agora a questão é salvar nossas vidas e tentar ir para um lugar mais seguro — embora não exista lugar seguro disponível em Gaza. Dessa vez (o deslocamento forçado) será real. Eles (os israelenses) vão apagar tudo na minha cidade — até a minha casa, até o meu quarto.”
Na manhã de domingo, 24 de agosto de 2025, Sara despertou e encontrou a casa tomada por malas e sacolas: seus pais haviam empacotado os pertences da família. Até então, os deslocamentos forçados haviam sido pontuais: a família havia cedido apenas duas vezes desde o início da ofensiva israelense, em outubro de 2023, cada vez retornando para sua residência no norte da Cidade de Gaza.
“Em outubro de 2023, o governo israelense deu a primeira ordem de evacuação. Tivemos que pensar com muito cuidado, porque deixar nossa casa significava viver em uma tenda. Eu, minha família e outros 30 parentes escolhemos permanecer. Foi uma escolha nossa, mas muito pesada, porque tivemos que decidir entre partir ou enfrentar um número massivo de bombas, a falta de comida, água, internet e eletricidade”, relatou Sara.
Em dezembro de 2023, diante da escalada da ofensiva militar, a família foi obrigada a buscar refúgio no hospital Al-Shifa, na parte oeste da Cidade de Gaza, onde permaneceram por 40 dias.

‘Eu sabia que minha vida nunca mais seria a mesma’, afirma jornalista palestina Sara Awad
Arquivo pessoal / Sara Awad
“Não tínhamos nada. Eu dormi no chão, no corredor do hospital, no meio do inverno congelante, sem nenhum cobertor. Eu dizia a mim mesma: ‘isso também vai passar'”, contou Sara.
A situação se agravou quando o hospital, que depois seria invadido e ocupado pelas forças israelenses, começou a ser alvo de ataques e foi cercado por seus tanques. A família conseguiu deixar o local pela porta dos fundos e voltou para sua casa no norte da cidade. Permaneceram lá até julho de 2024, quando uma nova ordem de evacuação os levou novamente para a parte oeste, na casa de um familiar, retornando três semanas depois para seu lar.
Diferente das vezes anteriores, agora a família considera abandonar de vez a casa onde viveram por gerações e buscar refúgio em tendas improvisadas no sul do enclave, diante da ameaça iminente de uma invasão total à Cidade de Gaza.
‘Eu sabia que minha vida nunca mais seria a mesma’
“A Sara que sou agora é diferente de quem eu era antes da guerra. Até minhas feições mudaram. A tristeza e a exaustão estão estampadas no meu rosto.” Enquanto se prepara para possivelmente deixar para trás a cidade onde viveu toda a sua vida e que guarda todas as suas memórias, Sara Awad relembra seus medos, traumas e a experiência de fome que marcaram sua vida desde o começo do genocídio em Gaza.
No dia 7 de outubro de 2023, Sara havia passado a noite estudando para uma prova da faculdade e planejava encontrar uma amiga para almoçar. Mas, às seis da manhã, começou a ouvir o som de uma quantidade massiva e incomum de foguetes. “Desde aquele dia, eu sabia que minha vida nunca mais seria a mesma”, contou à repórter de Opera Mundi.
Sara, seus pais, seus quatro irmãos e sua irmã ficaram longos períodos isolados do mundo, sem eletricidade ou meios de comunicação. A família dependia do rádio do pai de Sara para entender o que estava acontecendo ao seu redor. “Outros parentes vieram para nossa casa porque a região estava completamente sob fogo. Ficamos juntos e sofremos juntos por meses.”
A fome em Gaza, orquestrada pela ocupação israelense
A decisão de permanecer na Cidade de Gaza durante a maior parte do genocídio foi cara à família da jovem palestina. Sara relata que aspectos comuns da vida humana foram subtraídos da sua rotina: refeições, acesso à água potável, e dinheiro para adquirir os poucos suprimentos ainda disponíveis. Sua experiência revela as múltiplas camadas de desumanização impostas à população do enclave e a fome orquestrada como tática de guerra.
“A fome para mim começou no primeiro dia da guerra”, confessou Sara. “Eu não conseguia colocar nada no estômago. O medo me consumia em todos os aspectos, não apenas mentalmente. Lamento ter sentido tanto medo. Como pude ter tanto medo? O pior que poderia acontecer é que eu morresse. E a morte parecia uma boa escolha em meio à guerra. Por isso, lamento ter estado tão assustada e instável… A guerra me ensinou a poupar energia e não gastá-la com algo que não posso controlar.”
Para Sara, ainda mais difícil do que lidar com a própria fome é tentar explicá-la para seus irmãos menores: “(meu irmão menor) costumava beber chá com leite todas as manhãs. Eu digo a ele: ‘não tem, seja forte’, mas por dentro sinto meu coração partido em milhões de pedaços. Como você diz a uma criança de 3 anos que não há leite?”

Imagem da Cidade de Gaza
Arquivo pessoal / Sara Awad
A escassez de alimentos imposta pelas forças israelenses é combinada com outras dificuldades praticamente intransponíveis. A ausência de transporte público, somada à falta de combustível, obriga os palestinos de Gaza a se utilizarem de carroças para transportar a si e seus pertences.
Com itens básicos, como água e café, sendo vendidos a preços exorbitantes — um litro de água não potável chegando a custar cerca de 5 dólares — a família de Sara, composta por oito pessoas, sobrevive com apenas um litro de água a ser dividido entre todos a cada 5 dias. Para sacar dinheiro, eles e outros palestinos de Gaza enfrentam taxas de cerca de 40% sobre o valor retirado. Cada aspecto da vida cotidiana é dificultado — para não dizer impossibilitado — pela ocupação.
“Entre as linhas da fome, existem muitos obstáculos. Eles (a mídia hegemônica ocidental) se concentram em generalidades, mas em sua maioria deixam de lado nossa vida emocional, física e financeira. Tratam a realidade como um bloco, mas a fome carrega múltiplos sofrimentos”, explica Sara. “Como as pessoas podem resumir a fome em uma ou duas linhas? (O que está acontecendo) exige um vocabulário mais profundo e complexo.”
A fome também afeta a vida profissional de Sara.
“De março de 2025 até a semana passada, tivemos os dias de maior sofrimento. Passei três dias sem comer nada, exceto uma sopa de lentilha. Foi uma situação terrível. Fiquei tonta (…) tive que recusar trabalhos porque estava exausta e não conseguia fazer mais nada’’, conta. ‘’Eu estava escrevendo um texto sobre a fome para o Intercept. Levei três ou quatro dias para escrever o que normalmente conseguiria em seis horas. Mas não tinha energia para colocar no papel; precisava poupar forças para o meu corpo. Naqueles meses, preferi ficar em silêncio. Falar gastava energia demais.”
Jornalismo como forma de resistência
“Quando meu pai assistia (ao jornal da) Al Jazeera na TV, eu dizia a ele: ‘um dia eu estarei lá'”, contou Sara, que até 7 de outubro de 2023, estudava Língua Inglesa na Universidade Islâmica de Gaza e sonhava em se tornar jornalista. O genocídio a afastou dos estudos, mas a aproximou do jornalismo: Sara começou a escrever não só para a Al Jazeera, mas para outros jornais internacionais proeminentes.
Desde o início do genocídio palestino em Gaza, em outubro de 2023, as forças israelenses foram responsáveis pela morte de mais de 270 jornalistas, tornando o enclave o local mais letal do mundo para jornalistas, superando a primeira e segunda guerras mundiais, as invasões do Iraque e do Afeganistão pelos Estados Unidos, e as guerras do Vietnã e da Ucrânia. Nesta segunda-feira, mais cinco jornalistas foram mortos num ataque a um hospital que vitimou um total de 15 pessoas.
“(Em 2023) eu tinha medo de caminhar ao lado de jornalistas, porque sabia que eles eram alvos. Agora, tenho uma perspectiva diferente. O jornalismo é a minha vida. É o lugar para o qual eu escapo, onde despejo toda a minha energia. Agora tenho uma mensagem e quero transmiti-la para o mundo todo. Tenho histórias não contadas para escrever. Esse se tornou o meu dever.”
A Universidade em que Sara estudava — que também era onde seu pai lecionava — foi destruída por bombardeios israelenses. “Quando ouvi a notícia de que nossa universidade estava sendo bombardeada, implorei ao meu pai para não chorar, porque eu sei o quanto ele a ama”, recordou Sara. “Minha universidade foi o lugar onde cresci. Meu pai me levava desde criança para suas aulas, e tenho muitas lembranças daquele lugar.”
Apesar de a Universidade Islâmica de Gaza ainda oferecer aulas online, Sara optou por deixar os estudos e concentrar esforços no jornalismo e em obter uma bolsa de estudos para deixar o enclave.
“Eu sonho com educação e uma vida normal — acordar para uma aula às 8 da manhã, tomar meu café, ter amigos, conquistar boas notas”, explicou Sara, emocionada. “Até que isso aconteça, como posso acompanhar um programa online? Não tenho um laptop. Como vou ligar meu celular e assistir a uma aula — que nem sequer é ministrada por meus professores, porque a maioria deles morreu? Tenho respeito pelos outros professores, mas isso não é meu sonho.”
Às vésperas de possivelmente ter de deixar sua casa para trás, Sara saiu com sua melhor amiga, Huda, que conheceu na Universidade, para caminhar pela Cidade de Gaza.
“Tirei fotos de todas as ruas da minha cidade, na esperança de que fiquem na minha memória quando eu for embora. (Eu e Huda) nos despedimos dos nossos lugares favoritos e prometemos manter contato, aconteça o que acontecer. Ela também é escritora. Compartilhamos sonhos: ela também sonha em viajar, em conseguir uma bolsa no exterior. Se tem uma coisa que aprendi com a guerra é que nada é impossível”, disse Sara, sorrindo.

Sara Awad e Huda
Arquivo pessoal / Sara Awad























