Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Através das redes sociais, com a ajuda de um jornalista espanhol, uma família palestina encontrou uma maneira diferente de mostrar ao mundo a escassez de alimentos que há em Gaza por conta do bloqueio de Israel. A série Menu de Gaza refletiu durante quase 17 meses o dia a dia na cozinha dos Hammad. Os pratos eram preparados com os poucos ingredientes disponíveis e com muita criatividade da cozinheira Amal, a mãe que não baixou os braços e fez de cada refeição um momento de encontro familiar onde o importante era se manter vivo por mais um dia.

“Pensamos que esse projeto ia durar um mês, nunca imaginamos que poderia durar todo esse tempo. Não encontrávamos nada para comer em Gaza, e quando as pessoas têm fome, arriscam a vida para conseguir o que for. Eu buscava o que fosse para  que a minha família fizesse pelo menos uma refeição diária”, disse o pai Kayed a Opera Mundi.

A filha Dalia, de 20 anos, é a autora das fotos. Com um único pano azul como cenário, ela tentava encontrar a melhor luz e o melhor ângulo para mostrar ao mundo o que eles conseguiam comer.

Israel usa a fome como arma de guerra e todos os dias eu ligava para Kayed para saber o que eles estavam comendo. A partir disso veio a ideia desse projeto, literalmente um menu de resistência. Nas redes sociais existe uma censura muito grande quando falamos da Palestina então pensei que um prato de comida seria difícil de ser censurado”, explicou o idealizador do projeto Mikel Ayestaran.

Ayestaran disse que diariamente recebia a foto do prato que a família Hammad comia e um áudio com a explicação de como eles tinham conseguido o alimento. “Eu compartilhava no meu Instagram e escrevia o texto de acordo com as informações que eles me passavam naquele dia, mas sem imaginar que isso ia crescer tanto e ter todo esse alcance”.

Inicialmente a ideia era só publicar as fotos, mas depois veio o desafio de fazer o livro Menu de Gaza através de uma campanha de financiamento coletivo. A meta inicial era arrecadar 30 mil euros, valor que, em poucos dias, ultrapassou 110 mil euros em doações. “Esse dinheiro será usado para a impressão e distribuição do livro e a família Hammad vai receber 15% do que for arrecadado. Além disso, 100% da renda obtida com a venda dos livros será revertida para a família”, afirmou o jornalista espanhol.

A ideia deu tão certo que Ayestaran recebeu recentemente o aclamado prêmio Ortega y Gasset de jornalismo na categoria cobertura multimídia. “Essa é uma maneira diferente de contar como os palestinos conseguem driblar o bloqueio israelense. Descobri que as redes sociais também servem para fazer jornalismo de guerra”.

família Hammad em Gaza

Família Hammad preparou pratos com poucos ingredientes disponíveis por conta do cerco de Israel
Arquivo pessoal

‘Forma cruel de torturar pessoas’

Sem energia elétrica ou gás, Amal tinha que se virar para cozinhar com lenha. “A caminhada para conseguir lenha era longa. Antes de outubro de 2023, quatro quilos de lenha de boa qualidade custavam um euro, agora um quilo custa quase três euros”, disse Kayed.

Ele fala espanhol fluentemente porque trabalhou como intérprete e fixer para diversos jornalistas em Gaza. O pai da família Hammad contou que com a escalada dos ataques de Israel ficou cada vez mais difícil conseguir alimentos. E quando tinha algo disponível para comprar, eram somente latas em conserva de feijão, lentilha ou ervilha, custando cada cerca de 15 euros.

“Antes de outubro de 2023 podíamos comprar em Gaza um quilo de farinha por 0,25 centavos de euro e hoje custa 50 euros o quilo. A mesma coisa com o açúcar, de 0,75 centavos a 140 euros o quilo”. Sobre a pouca ajuda humanitária que chega ao enclave e é jogada de aviões, Kayed diz que isso é uma grande armadilha.

“Jogar comida do céu é uma maneira de matar muita gente. Em algumas ocasiões, os paraquedas não abriam ou caíam em áreas inacessíveis, perto do Exército de Israel ou no mar. Esse tipo de ação é apenas uma maneira de fazer um show para que o mundo pense que nos ajudavam, mas realmente essa é uma forma cruel de torturar pessoas. Assim como os pontos de distribuição de alimentos que foram montados lá, totalmente ineficazes”.

Assim como tantas famílias palestinas, eles também viveram de perto os horrores das ações de Israel. O Exército israelense matou o filho mais velho dos Hammad, de 24 anos, em um bombardeio. O prédio onde eles moravam ficou totalmente destruído na primeira semana e depois disso tiveram que mudar 17 vezes de casa. “Era literalmente escapar o tempo todo. A gente fugia de noite com a roupa do corpo, não podíamos levar nada mais”.

Com a voz embargada, ele relembra as dificuldades pelas quais passaram em Gaza. “Nós já passamos por sete guerras, mas esta não se parece em nada com as outras. Isto é pura vingança, o que está acontecendo agora é genocídio. Sobreviver em Gaza é como estar no corredor da morte. Estamos esperando nosso momento final. É como brincar de esconde-esconde com a morte o tempo todo”.

‘Menu de Gaza’ mostra as refeições dos Hammad dos últimos 17 meses
Divulgação

Recomeço na Espanha

A partir de uma movimentação de jornalistas e coletivo de pessoas ligadas ao mundo da cultura e ao Repórteres Sem Fronteiras, a família Hammad foi evacuada pelo Ministério das Relações Exteriores espanhol em junho deste ano.

“Achei que era impossível sair de lá. Viver em Gaza é como estar em uma prisão a céu aberto. O maior milagre é que a gente conseguiu se manter vivo até agora”, disse Kayed.

Há alguns meses a família palestina começou uma nova vida na Espanha. Na pequena cidade de Segóvia, a 90 quilômetros de Madri, enquanto esperam pelo status de refugiado, Kayed conta que o objetivo principal agora é que seus filhos aprendam espanhol e possam estudar.

“Com certeza aqui eles terão mais oportunidades, terão paz, vão estudar e pelo menos terão comida e o melhor é que vão poder viver tranquilamente”.