Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Uma reportagem do jornal britânico Guardian junto com o grupo Repórteres Árabes para Jornalismo Investigativa (RAJI) traz o depoimento de médicos que passaram meses em prisões israelenses sendo torturados.

Em seus relatos, os entrevistados disseram terem sido presos exatamente por serem médicos, e alguns deles afirmam que os soldados que os prenderam teriam selecionado ‘os mais experientes e essenciais’.

Issam Abu Ajwa, de 63 anos, disse que realizava uma cirurgia de emergência quando os soldados vieram buscá-lo. Assim que confirmaram sua identidade, o arrastaram para fora da sala de cirurgia e a surra começou ali mesmo, no hospital al-Ahli Arab. Espancado, algemado e despido foi levado com outros da equipe médica do hospital para uma prisão de Israel, onde começaram meses de torturas diárias.

“Eles me jogavam no chão. Um me batia na cabeça enquanto o outro abria meu ouvido e despejava água dentro”, conta o médico que teve a maior parte dos dentes quebrados. “Eu estava amarrado, vendado e três ou quatro deles seguraram meu rosto para que outro esfregasse meus dentes com a escova do vaso sanitário”, lembra Ajwa.

Segundo ele, os torturadores buscaram machucar sobretudo as suas mãos. “O mais experiente disse aos outros que, como eu era cirurgião sênior, eles deveriam trabalhar duro para que eu ficasse incapaz de operar”, conta Ajwa. Ele permaneceu algemado dia e noite por meses com os dedos presos em tábuas com correntes.

“Eu disse que ‘não importa o que você faça, sou médico e continuarei até meu último suspiro na sala de cirurgia’”. Ajwa ainda não conseguiu consertar os dentes, mas já voltou a trabalhar. Como a maioria dos entrevistados, ele está convencido de que foi alvo de violência extrema exatamente por ser médico.

160 médicos palestinos continuam nas prisões israelenses

Quando o cessar-fogo entrou em vigor, em janeiro, mais de mil profissionais de saúde haviam sido assassinados em Gaza. Dos 38 hospitais do enclave, 27 foram bombardeados, muitos deles várias vezes até serem reduzidos a escombros. Uma comissão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas investigou os ataques e concluiu que se trataram de crimes de guerra.

Quando as instalações não eram destruídas, o acesso a elas era impedido. Imagens de satélite apresentadas pela reportagem mostram como diques de terra e bloqueis militares foram colocados no entorno para impedir o acesso dos pacientes e a chegada de insumos aos hospitais.

Profissionais e infraestrutura de saúde eram alvos preferenciais, assim como jornalistas. Isso embora o direito internacional determine que eles devam ser protegidos em áreas de conflito e ter permissão para continuar prestando assistência a todos que precisem.

Segundo a ONG médica palestina Helthcare Workers Watch, o exército israelense prendeu 339 profissionais de saúde de Gaza e ao menos 160 permancem em suas prisões. A Organização Mundial de Saúde (OMS) contabiliza um número um pouco menor de prisões (297) e duas mortes confirmadas.

Hussam Abu Safiya, diretor do Hospital Kamal – transformado em escombros pelos bombardeios e ataques israelenses com tanque – está entre os que continuam detidos. Sua família teme por sua vida porque ele já estava ferido quando foi preso. Seu advogado, autorizado a visitá-lo na semana passada, conta que ele foi torturado, espancado e está sem tratamento médico.

Ambulância bombardeada em Gaza

Wikimedia Commons
Ambulância bombardeada em Gaza

Preso e torturado por ser médico

A reportagem conjunta do Guardian e do ARIJ ouviu o depoimento de sete dos médicos que foram soltos. Nenhum deles foi informado do motivo da sua prisão, mas todos foram presos depois de serem identificados como médicos e na prisão passaram por tortura, espancamentos, fome e humilhações.

Mohammed Abu Selmia, diretor do hospital al-Shifa, no norte de Gaza, foi preso em um posto de controle quando viajava com um comboio de ambulâncias com pacientes depois que o exército ordenou a evacuação do seu hospital, em novembro de 2023.

“Quando disse o meu nome, apontaram suas miras laser para a minha cabeça e peito e fui imediatamente preso… como se estivessem à minha espera, como se tivessem apreendido um grande prêmio”, contou Selmia aos repórteres.

O espancamento começou no local, com coronhadas de rifles dadas enquanto ele estava ajoelhado e vendado. “Depois, eles jogaram a mim e a muitos outros em um veículo, todos gritando, empilhados uns sobre os outros“, lembra Samia.

Em dezembro de 2023, um mês depois da prisão de Abu Selmia, uma missão da Organização Mundial de Saúde visitou o hospital e descreveu suas instalações como um “banho de sangue”, superlotado, com pacientes sendo atendidos no chão. Na época, o hospital al-Shifa era um dos três que permanecia minimamente funcional dos 24 hospitais que operavam na região antes da guerra.

Faltava pessoal, oxigênio, combustível e todo tipo de suprimento. Cinco meses depois, o hospital foi alvo das tropas de Israel e permaneceu duas semanas ocupado por elas em uma operação que se saldou com centenas de mortos. Na ocasião, o exército israelense, houve outra prisão em passa de pessoal médico com relatos posteriores de tortura que publicanos no Opera.

‘Nos tratavam como se não fôssemos humanos’

A reportagem conjunta do Guardian e dos RAJI destaca que todos os médicos entrevistados relataram o mesmo padrão. Todos foram detidos depois de se identificarem como médicos, depois transferidos para Israel, encarcerados e torturados. Espancamentos constantes, ser mantido em posições estressantes durante horas e música alta permanentemente para impedi-los de dormir estão presentes na maioria dos relatos.

“Havia pouca ou nenhuma comida, nenhuma água, nenhum banheiro… Vi pessoas morrendo lá. Não importa o quanto eu fale, será apenas uma fração do que aconteceu. Não passava um dia sem tortura”, conta Abu Selmia.

Similar é o depoimento do Dr. Mohmoud Abu Shejada, chefe de cirurgia ortopédica do hospital Nasser, no sul de Gaza. Seu hospital foi invadido pelas tropas israelenses depois de vários bombardeios que mataram pessoal médico e pacientes. Ele foi preso no local de trabalho e lá mesmo submetido, junto com toda a equipe médica, a mais de 12 horas de espancamentos. Todos despidos numa noite fria e borrifados com água. “Na prisão de Negev, os detidos nos contaminamos com doenças de pele, sarna e infecções graves com pus e secreção”, conta ele.

Depois que as tropas israelenses deixaram o hospital Nasser, a Defesa Civil de Gaza encontrou mais de 50 corpos de pessoal médico e pacientes com sinais de tortura que haviam sido enterrados com escavadeira no pátio do hospital

Bassam Miqdad, chefe de cirurgia ortopédica do hospital europeu em Gaza, foi preso ao passar por um controle militar. Ele ficou sete meses em prisões israelenses. “Vi pessoas com membros quebrados e os guardas as puxavam. Eles perguntavam ‘onde dói?’ para te bater no ferimento”.

“Mas não eram apenas as surras, era a maneira como nos tratavam. Como se não fôssemos humanos. Eles nos faziam uivar como cães”, lembra Miqdad.

Relatórios de torturas se amontoam sem que Israel seja punido

Inúmeros relatórios da ONU e de diversas organizações de defesa dos direitos humanos e de médicos relatam tortura praticada por Israel contra profissionais de saúde. Choques elétricos, agressão sexual e até mutilação de genitais constam nesses relatórios, que evidenciam a frequência dos casos de tortura. Sem falar da destruição de hospitais.

Um médico contou ao Guardian e ao ARIJ que testemunhou agressões sexuais contra um profissional de saúde. “O ataque foi tão violento que causou graves rupturas musculares no reto. Fizemos várias cirurgias nele, mas não tivemos sucesso”, conta o Dr. Khaled Serr, cirurgião do hospital Nasser.

O governo israelense alega que atacou os hospitais de Gaza porque estavam sendo usados pelo Hamas como postos militares. Mas não apresentaram prova alguma e em alguns casos, as alegações foram desmentidas por informações disponíveis. Ao mesmo tempo, médicos norte-americanos que atuaram em Gaza garantem que só viram civis nos hospitais, onde disseram que a situação era de verdadeiro genocídio promovido por Israel.

O Guardian repassou todas as informações da reportagem às Forças de Defesa d Israel (IDF, por sua sigla em inglês). Eles responderam genericamente que operavam “para restaurar a segurança dos cidadãos de Israel” sempre “de acordo com o direito internacional”.

 

Com informações do The Guardian.