‘Força Internacional de Paz é única saída para Gaza', afirma especialista
Reginaldo Nasser analisa os dois anos de genocídio perpetrado por Israel contra palestinos e critica retórica dos países e solução de dois Estados
Após a ofensiva do Hamas, em 7 de outubro de 2023, “o que se seguiu foi um genocídio transmitido ao vivo”, avalia Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. “A Rússia assiste, a China assiste, o Brasil assiste. O [Teddy] Roosevelt dizia ‘fale manso e segure o cassetete’. Com Israel, os países falam duro e agem suavemente”.
Para o também coordenador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (Geci), é preciso observar o que vem sendo feito concretamente em torno de um cessar fogo. E, neste sentido, a única proposta concreta e exequível até agora partiu do presidente colombiano Gustavo Petro, em seu discurso na 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas.
“Não é apenas correta, é honesta e a proposta mais concreta para haver um cessar-fogo: a instituição de uma força internacional de paz”, avalia Nasser.
Sobre “o plano de paz imperial” apresentado pelo presidente Donald Trump e discutida nesta semana no Cairo, por delegações israelenses e do Movimento Islâmico de Resistência, o Hamas, Nasser o avalia como um ultimato: “aceita ou é eliminado”.
“Hoje, a única autoridade política que tem o apoio da população, que está organizada e tudo mais, chama-se Hamas, mas os Estados Unidos, Israel e os países árabes – com exceção do Catar – nunca vão aceitar”, disse.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Reginaldo Nasser:
Opera Mundi: como você avalia o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023?
Reginaldo Nasser: nenhum acontecimento histórico pode ser visto isoladamente e em relação à Palestina, especificamente a Gaza, o 7 de Outubro demorou para acontecer. Em 2005, Ariel Sharon promoveu um processo de desocupação israelense em Gaza, quando ainda havia cerca de 7 mil colonos em Gaza e a direita religiosa não era forte como hoje em Israel.
Alguns se perguntavam se Sharon havia mudado e em resposta ouviam: “ele vai sair daí”. Foi o que aconteceu. Em 2006, houve um processo eleitoral legislativo na Palestina, monitorado por organizações internacionais e presidida por Jimmy Carter e o Hamas venceu o Fatah, inclusive declarou que conversaria com os Estados Unidos e Israel. A vitória na Palestina levou a uma guerra civil entre o Hamas e o Fatah.
A Faixa de Gaza foi cercada por terra e pelo mar naquilo que chamamos de “colonialismo sem colonos”. Israel passou a controlar a entrada de alimentos, muitos foram proibidos. Não deixava mais ninguém entrar, nem sair, tornado Gaza uma prisão a céu aberto. A situação ficou tão insuportável que, em meados de 2010, uma comissão das Nações Unidas avaliou que a população em Gaza não sobreviveria até 2021.
Esse é parte do processo que culminará na reação do Hamas de 7 de Outubro.
A imprensa classifica como um ato terrorista.
Houve ações terroristas e ações militares de resistência. São atos terroristas, não o ator que é terrorista, até porque o Estado de Israel vive fazendo terrorismo e ninguém o chama de país terrorista. Aconteceram ataques aos postos de controle dos militares e pessoas que apoiavam os palestinos ou pertenciam a organizações judaicas antissionistas morreram.
Alguns dizem que houve uma perda de controle do Hamas e que as pessoas afluíram de forma desordenada. Ainda que não tenha sido o Hamas, ele tem responsabilidade. Agora, matança de bebês e outros absurdos divulgados são fake news, como já foi comprovado.
Tanto o Ilan Pappé quanto o Norman Finkelstein afirmam que foi um ato terrorista de uma população em desespero. Não foi uma ação arbitrária contra um país, mas uma reação a um processo histórico que começa com a expulsão dos palestinos de suas terras, antes da ‘partilha” de 1947. Ali, uma comissão das Nações Unidas decidiu que 30% da população israelense ficava com 60% de terras. Isso levou à expulsão de 700 mil palestinos.
Antes do 7 de Outubro, a questão palestina havia sumido da agenda e ela ressurgiu no debate internacional. Foi um ataque pensado também em função da possibilidade de adesão da Arábia Saudita aos Acordos de Abraão, assinados entre Israel e os Emirados e o Bahrein em 2020, durante o primeiro mandato de Donald Trump.
Um mês antes do 7 de Outubro, [Benjamin] Netanyahu havia mostrado a Joe Biden que a Arábia Saudita, fora dos Acordos, era uma protagonista na região para Israel e os Estados Unidos. Obviamente, viria algo bem pesado, mas ninguém imaginava dois anos de genocídio, e o mais espantoso: com apoio da sociedade judaica israelense e seus grupos políticos.
Netanyahu não é o problema, ele é mais uma consequência do que uma causa. As críticas que ele vem sofrendo nada tem a ver com o genocídio palestino, mas sim por não ter conseguido trazer os reféns de volta. Algumas pesquisas de opinião são chocantes e eu analisei várias. Uma delas questionava: “você se importa muito, pouco ou não se importa com a fome na Palestina?” A maioria dizia não se importar e não querer a presença de palestinos em Gaza. A posição da população israelense em relação aos palestinos é cada vez pior.
A quais elementos você atribui esses dois anos de ataques, fome, cerco, bombardeios diários?
Chama muita atenção nesses dois anos de genocídio é que antes, a apuração vinha posteriormente. Agora, nós estamos assistindo a um genocídio acontecer ao vivo. É importante esclarecer que a questão principal na acusação de genocídio não é o número de mortes, não é percentual, mas sim a intencionalidade dos que dirigem o processo de eliminação total ou parcial de uma população.
Os estudos mostram que há uma regularidade nesse comportamento em todos os genocídios. Eu li o processo da ONU sobre o genocídio e ela tem citações exaustivas de líderes israelenses pedindo a eliminação dos palestinos. Declarações de dirigentes, oficiais, ministros, secretários afirmando que vão cercar e que as pessoas serão eliminadas. Não dá para esperar todas as pessoas serem mortas para acusar de genocídio. É preciso intervir quando os sinais de intencionalidade e de progressão se configuram.
A maior explicação estrutural para esses dois anos de genocídio é o sistema internacional. De certa forma, a Guerra Fria dava um certo equilíbrio. Em 1967 e 1973, a Síria e o Egito perderam a guerra para Israel, morreu gente e acabou. E isso ocorreu porque quando Israel estava rumando para Damasco, o [Leonid] Brejnev, ligou para o [Henri] Kissinger, na época do Gerald Ford, e disse: “pode parar”. O Kissinger ligou para Israel e parou. São os limites que as grandes potências colocam.
Hoje, principalmente no Oriente Médio, o mundo se desequilibrou demais. A China e a Rússia têm um papel importante no Oriente, isso mudou a configuração, mas não têm na Palestina. Militarmente, os Estados Unidos vão às últimas consequências no Oriente Médio; mas a Rússia e a China não entram. Nesta última guerra, elas deixaram o Irã, não é só a Palestina.
O Irã viveu seu maior perigo de sobrevivência do regime. Foi atacado e atacou duramente Israel. O Irã vende 90% do petróleo da China, faz comércio, mas os chineses não entram militarmente. E o que define a questão não é o direito internacional, mas as bombas. São situações de força que definem o desenrolar dos conflitos, não adianta recorrer ao direito internacional. Israel conseguiu entrar no sistema de inteligência do regime iraniano e atingiu significativamente o Irã, mas quando o Irã reagiu expos a fragilidade da defesa israelense causando danos consideráveis nas cidades, por isso teve acordo.

‘Força armada internacional é a única saída para Gaza’, defende Nasser
Reprodução/ Agência Wafa
Entretanto isso não acontece na Palestina simplesmente porque eles não têm força suficiente para se contrapor. Se o Hamas tivesse metade da força do Hezbollah, haveria acordo. Eles iriam atingir tanto Israel que eles iriam dialogar. No momento, não há guerra em Gaza, o Hamas está apenas resistindo, não consegue atacar Israel está completamente encurralado. Os palestinos não tem como fugir, ninguém pode sair dali. É uma situação excepcional de tragédia.
A Rússia assiste, a China assiste, o Brasil assiste e estou cunhando uma frase para isso. O [Teddy] Roosevelt dizia “fale manso e segure o cassetete”. Hoje, com Israel, os países falam duro e agem suavemente. O Brasil vai lá e diz “genocídio”, “Estado palestino”, e daí? Israel construiu um sistema de relações com o mundo, com a Índia, China, Rússia, fora os países ocidentais. Como eles vão romper isso?
Como você avalia a recente proposta anunciada por Donald Trump?
Os Estados Unidos sempre fazem a mediação desses acordos. Não é nem aliado, é o patrão. E faz sem a participação dos palestinos e sem conversar com ninguém. Se tudo está marcado, como você vai negociar? Desde o início, o Catar sempre foi o ator mais qualificado, mas os Estados Unidos fazem um plano e dão um ultimato ao Hamas: ou aceita ou está liquidado.
Surpreendentemente, o Hamas aceitou o ultimato dos EUA e Israel, mas foi uma concordância parcial. Concordou com aquilo que é urgente e necessário, a libertação dos reféns e em troca o cessar fogo; e disse que está aberto para novas negociações que estão acontecendo neste momento no Egito. Além de completamente esgotado, sem forças para resistir por muito tempo, o Hamas testou se o plano era para valer e deixou Netanyahu numa “sinuca de bico”.
Certa vez, eu li a história de um agente do serviço secreto britânico que teve o filho morto pelo IRA e se viu obrigado, anos depois, a conversar com eles. Ele encontrou o IRA e disse ter sido obrigado pelas circunstâncias. Esse tipo de coisa não existe mais, sumiu do espectro.
O plano de Trump não é de paz, ou como se diz, é de uma “paz imperial”. Os Estados Unidos têm uma estratégia e tudo o que chamam de paz no Oriente Médio tem uma jogada estratégica política por trás. Os Acordos de Paz de Camp David, em 1978, entre o Egito e Israel, por exemplo.
O Egito era a maior pedra no sapato de Israel. O presidente [Gamal Abdel] Nasser havia nacionalizado o Canal de Suez e por isso foi atacado por Israel, Inglaterra e França. Os Estados Unidos – e isso não é mentira – não sabiam de nada. Foi a única vez em que os Estados Unidos e a União Soviética estiveram do mesmo lado, mas com objetivos diferentes.
A questão foi parar no Conselho de Segurança e a Inglaterra e a França vetaram. Os Estados Unidos de Eisenhower, um republicano, levou a questão à Assembleia Geral da ONU que fez exatamente o que [Gustavo] Petro propôs agora em outra Assembleia da ONU. Eles enviaram uma força que acabou o conflito e garantiu a nacionalização do Canal de Suez.
Esse negócio de reformar o Conselho de Segurança é bobagem. Se os países decidirem, com as regras que existem, dá para interromper a guerra em Gaza com uma força de paz. A fala do Petro está corretíssima. Aliás, ela não é apenas correta, é honesta. É a proposta mais concreta para haver um cessar-fogo: a instituição de uma força internacional de paz.
O Brasil participou desse processo e curiosamente foi o general Castelo Branco que comandou as tropas brasileiras; e Carlos Lamarca fez parte das forças de paz que, aliás, atuaram na Faixa de Gaza. Nas suas memórias, ele conta que, até então, para ele, a fome só existia no Brasil. No deserto, ele descobriu que havia fome e passou a ter consciência da luta internacional.
O Brasil defende a solução de dois Estados. O que você acha dessa proposta?
Estamos vivendo um genocídio e a questão mais importante hoje para o palestino é o cessar-fogo. Eles estão exterminando as pessoas e os países vão discutir dois Estados? É óbvio que isso vai desviar a atenção e só estão discutindo porque há uma forte pressão da população na França, Alemanha, Inglaterra, Canadá, Austrália, Estados Unidos. Tem gente todos os dias na rua, então, esses governos dizem “reconhecemos o Estado palestino”.
É impossível a existência de dois estados. A Cisjordânia tem hoje entre 600 mil e 700 mil colonos israelenses. Quem vai tirar esses caras? Quem é o político ou a força social em Israel que vai propor isso? E como você vai ter um Estado com dois territórios separados? Não vou discutir princípios do direito internacional, mas questões concretas. A questão dos dois Estados que se colocava até 1967 deixou de existir depois da ocupação de Gaza e Cisjordânia. Os Acordos de Oslo recolocaram a questão, mas já era tarde, a colonização já era um processo em marcha.

Professor de Relações Internacionais considera proposta de Trump um ultimato ao Hamas: “aceita ou é eliminado”
Divulgação
Alguns embarcam nisso de ingenuidade, outros usam de retórica e há os que pensam em estratégia mesmo para evitar os problemas reais. Dois estados é uma proposta 100% descaracterizada e sem nenhum tipo de chance, mas como o Netanyahu é esperto, ele desvia o foco do genocídio e fica discutindo.
Eu me alinho aos que dizem que já tem Estado lá. A questão é mudar esse Estado. É admitir que os palestinos sejam cidadãos, que tenha eleições e acabe o apartheid. É preciso uma mudança e integrar essas pessoas, judeus e palestinos, neste estado, assim como aconteceu na África do Sul.
Quando falamos dois Estados, as pessoas pensam numa situação ideal em que cada parte seria representada em um acordo diplomático. Mas, o problema é que um possui um exército muito poderoso e o outro não tem nenhuma força militar equiparável. Não é como no conflito Ucrânia e Rússia. É colonialismo, assim como foi em Angola, Moçambique, Argélia. Alguém chegou a discutir dois estados nesses países? Democratizar o Estado quer dizer que se trata de um Estado binacional.
O que você achou do discurso do presidente da Autoridade Palestina (AP), Mahmoud Abbas?
O discurso do Abbas foi um horror. Ele pode ter, é natural que tenha, suas divergências com o Hamas, mas nesse momento de genocídio, foi do pior servilismo. O visto dele foi negado pelos Estados Unidos e ele ainda “puxa o saco”? É humilhação. Duvido que algum palestino, ainda que tenha saudades do Yasser Arafat, vai apoiar o que ele está fazendo com o Hamas.
Importante lembrar que o Hamas surgiu no contexto da primeira Intifada, em 1987, em meio a revolta popular. Era uma instituição de caridade que, em meio ao agravamento da situação, percebeu que não havia outro canal. É provável que o Abbas pense em participar do governo em eventual transição e cessar-fogo, vendendo-se novamente.
Hoje, a única autoridade política que tem o apoio da população, que está organizada e tudo mais, chama-se Hamas. Eles disseram que fariam parte de um governo de coalização e participaria tranquilamente em uma composição extremamente realista e pragmática. Mas os Estados Unidos, Israel e os países árabes – com exceção do Catar –, nunca vão aceitar isso.
É difícil prever como isso será resolvido porque existe um problema de representação. Seria preciso uma autoridade forte como o Marwan Barghouti, um político e líder do Fatah com forte apoio popular que está em uma prisão perpétua desde 2002 em Israel, após ser acusado de terrorismo. O Hamas tentou negociar a soltura dele.
O Barghouti seria eleito de qualquer jeito. Ele tem carisma, representatividade e legitimidade junto à população palestina. E dias atrás, o ministro de Defesa de Israel, o Ben-Gvir, entrou na cela dele para ameaçá-lo e à sua família. Ele gravou isso e publicou nas redes. Um ministro de Estado… O que ilustra a importância do Barghouti.
Como os países do Oriente Médio se relacionam com a questão dos palestinos?
Os palestinos nunca foram bem-vistos pelos governos e elites do mundo árabe, ao contrário do que acontece com a população árabe, que os apoia totalmente. Esses países viveram a dominação de impérios e suas monarquias viraram repúblicas sob a liderança de governos militares. Egito, Líbia, Síria, Iraque.
As elites desses países surgiram no pós-colonialismo, no entanto, parte dela rachou. É quando surge o nacionalismo árabe que tem uma dupla face: a anti-imperialista e a que acabou com o comunismo. Na década de 1960, quando o nacionalismo árabe ascendeu, o comunismo estava em alta e eles acabaram com os movimentos comunistas nestes países.
Os palestinos têm uma posição de esquerda e socialista secular. Com a diáspora, pela própria condição, eles sempre foram muito politizados. Você conversa com qualquer palestino e ele te explica a situação do Oriente Médio. Esses países sempre quiseram falar pelos palestinos, mas quando eles começaram a ter voz própria, isso gerou medo e problemas, porque a luta palestina acaba convergindo com as lutas locais contra os regimes ditatoriais.
Em contraposição, as populações apoiam os palestinos em qualquer lugar no mundo árabe. Então, os governos ficam nessa linha de gestos simbólicos, mas nenhum deles se mexe. As monarquias do Golfo são poderosíssimas. Se quisessem, amanhã haveria um cessar-fogo. Emirados Árabes, Arábia Saudita, Catar, Bahrein. Não precisa de Rússia, de China, de ninguém. Eles parariam isso daí.
Como você explicaria a aliança Israel-EUA?
Muitos vão na linha do lobby sionista e isso tem respaldo no livro “O Lobby de Israel e a Política Exterior dos Estados Unidos”, do [John] Mearsheimer e [Stephen] Walt. Eles afirmam que tudo o que o país faz por Israel é contra o interesse nacional e aguça ainda mais o antiamericanismo. Esse argumento voltou agora no MAGA.
O Noam Chomsky publicou uma resenha de apenas três páginas sobre essa ideia do lobby sionista. Ele disse que a ligação entre os Estados Unidos e Israel não é em questões específicas como um lobby, mas atinge todos os níveis: econômico, militar, cultural, tudo. Outro ponto é que quando os Estados Unidos mandam armas para Israel, quem lucra é a indústria armamentista norte-americana.
Chomsky também destacou, nessa resenha, que Israel é um projeto do capitalismo ocidental, “eles fazem o trabalho sujo” no Oriente Médio. Só quando a coisa chega no limite é que os Estados Unidos entram.
Eu diria que é uma questão de classe. Não é lobby em questões específicas. O professor Raul Rodríguez, da Universidade de Havana, outro dia me disse: “Reginaldo, não precisa ter lobby cubano, é o governo dos Estados Unidos”. Ou seja, o projeto dos Estados Unidos para Cuba é este. Na minha avaliação, é a mesma coisa no caso de Israel.























