Família luta pela liberdade de ‘Mandela palestino’ após 23 anos de prisão em Israel
Irmão de Marwan Barghouti falou com exclusividade a Opera Mundi sobre as chances de libertação e de frear genocídio em Gaza
No último dia 15 de agosto, o preso político Marwan Barghouti, apontado como o mais importante da Palestina, foi visto pela primeira vez em dois anos. Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança Nacional de Israel, divulgou em sua conta no X um vídeo em que aparece ameaçando Barghouti, conhecido como o “Mandela palestino”, na prisão.
O vídeo mostra o ministro da extrema-direita escoltado por agentes de segurança, enquanto diz a Barghouti “você não vai vencer”. “Quem matar nossas crianças e mulheres será eliminado. Você deveria saber disso, foi o que aconteceu ao longo da história”, completou, quando o palestino tenta argumentar, mas sem sucesso.
A cena foi noticiada mundialmente, mas praticamente não repercutiu na imprensa brasileira. Marwan Barghouti é pouco conhecido no Brasil, ignorado por uma cobertura midiática presa a estereótipos e desconhecimento da sociedade palestina. Internacionalmente, no entanto, já foi descrito como “o preso político mais importante do mundo”. Encarcerado em 2002, sentenciado a 40 anos e cinco penas perpétuas por Israel, ele é o maior representante do projeto de unificação dos partidos palestinos.
Liderança da Fatah, principal partido da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Barghouti encabeça a lista de presos políticos negociada pelo Hamas para o cessar-fogo em Gaza. Na prisão, em 2006, ele liderou a redação do Documento dos Prisioneiros, um manifesto em defesa da unificação dos partidos palestinos e da criação de um Estado palestino.
Moqbel Barghouti, seu irmão mais novo, concedeu esta entrevista em Koba, vilarejo de origem da família, a 10 quilômetros de Ramallah. Lembrou “o primeiro choque” vivido por Marwan com a ocupação israelense, quando, aos 11 anos, viu o cachorro da família ser alvejado e morto por soldados; descreveu sua trajetória como liderança palestina, desde a juventude até a prisão; e analisou a popularidade que ainda hoje carrega, figurando como primeiro colocado em pesquisas de opinião para a presidência da Palestina mesmo após 23 anos de prisão.
Para Moqbel, é precisamente a popularidade de Marwan que o mantém até hoje encarcerado, já que sua libertação ameaça não apenas a ocupação, mas também o núcleo que controla a Autoridade Palestina e opera uma política de conciliação com Israel.
“Esse é o mais importante nos motivos dele estar até hoje preso. Porque é o povo palestino quem o quer”, diz. Confiante na libertação de seu irmão e na liberação da Palestina, Moqbel reafirma que a principal preocupação de todos os palestinos neste momento deve ser o fim do massacre em Gaza. “A ocupação certamente terminará; é a última ocupação colonial na Terra. O mundo agora está percebendo a extensão do nosso sofrimento, da nossa opressão”, avalia.
Leia a íntegra da entrevista com o ativista palestino Moqbel Barghouti:
Opera Mundi: Como foi ver seu irmão, Marwan Barghouti, no vídeo publicado por Itamar Ben Gvir?
Moqbel Barghouti: Um misto de tristeza e alegria. A coisa mais importante é que foi a primeira vez que vimos ele desde o início da guerra, e agora sabemos que ele está vivo e com saúde. A visita do criminoso Ben Gvir foi para ameaçar e tentar fazer uma demonstração de força. Esperamos vê-lo livre muito em breve, bem como todos os prisioneiros do nosso povo. Muito, muito em breve.
O que a família sabe sobre as condições dele na prisão atualmente? As coisas mudaram desde 2023?
Antes de 7 de outubro [de 2023], as famílias dos prisioneiros tinham direito a visitas mensais. Desde então, todas as visitas familiares para prisioneiros palestinos foram proibidas – apenas advogados são permitidos. A vida na prisão desde então se tornou um inferno. Mais de 20 prisioneiros morreram dentro dessa prisão. Há doenças disseminadas, especialmente sarna. Meu próprio filho esteve entre os afetados, após 14 meses de detenção. A vida na prisão é tortura – espancamentos diários, abusos, especialmente sob Itamar Ben Gvir, o Ministro da Segurança Nacional.
Depois de 7 de outubro, todos os líderes prisioneiros de todas as facções – Fatah, Hamas e outras – foram colocados em confinamento solitário, onde permanecem até hoje. A cada semana ou duas, as prisões são invadidas; os prisioneiros enfrentam espancamentos diários.
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O mais preocupante: cerca de 2 mil prisioneiros de Gaza estão sendo mantidos em campos militares, não em prisões. Sde Teiman é a mais conhecida dessas instalações e é frequentemente citada em relatórios de direitos humanos. Eles são privados de visitas de advogados ou de organizações internacionais. Se supõe que muitos prisioneiros de Gaza tenham sido mortos sob detenção, sofrendo muito mais do que os detidos da Cisjordânia, com seu paradeiro ainda desconhecido.
Mesmo em pesquisas de opinião mais recentes, depois de 20 anos de prisão, Marwan Barghouti ainda aparece como favorito para a presidência da Palestina. Isso conta para que ainda esteja preso?
Esse é o mais importante dos motivos dele estar até hoje preso. Porque é o povo palestino quem o quer, esse é o pedido do povo palestino. Marwan era muito próximo de Yasser Arafat e admirava líderes como Nelson Mandela – um líder humilde, próximo do povo, vivendo como eles viviam, comendo o que eles comiam, desinteressado em luxos ou guardas. Ele se importa com a educação, com as mulheres, com o povo, com as questões do dia a dia. Um verdadeiro líder popular. É por isso que os palestinos querem Marwan como líder depois de sua libertação. E eu confio que ele será libertado em breve, e nós celebraremos em breve. Mas quero destacar que a coisa mais importante para cada palestino é que o massacre em Gaza pare.
Qual projeto político Marwan representa para a Palestina?
Ele é próximo do povo, de todos os segmentos da sociedade. Ele sempre manteve uma relação próxima com o povo, e é por isso que se tornou tão amado entre os palestinos. Por essa razão, durante toda a sua detenção, de 2002 até hoje – já são 23 anos – ele sempre ocupou o primeiro lugar nas pesquisas de opinião. Ele é um firme defensor da unidade nacional, da democracia e do direito do povo de eleger sua liderança e seus representantes.
Ele acredita no diálogo: antes de sua prisão, realizou dezenas de encontros com israelenses e com pessoas em muitas capitais do mundo. Ele foi presidente do Comitê de Amizade Franco-Palestina no parlamento palestino.

Moqbel Barghouti afirma que seu irmão Marwan Barghouti tem sofrido com torturas e outras violações aos direitos humanos durante seus 23 anos em prisões israelenses
Erick Dau
Marwan é um homem de diálogo e, porque também entende os israelenses e sua língua, tentou transmitir uma mensagem a eles sobre a importância da paz para os povos palestino e israelense. Sua mensagem principal era: nós, palestinos, não somos amantes da morte. Nós sofremos sob uma ocupação, que agora já dura 77 anos, e exigimos viver em paz e segurança como outros povos do mundo. Mas, infelizmente, as coisas não aconteceram como desejávamos. Ele sempre esteve convencido e historicamente defendeu a solução de dois Estados, de que a única solução é dois povos vivendo lado a lado em dois Estados.
Quem de fato está comprometido com sua soltura? Sua liberação é uma ameaça à Autoridade Palestina?
Com certeza. Isso não é segredo – todos sabem disso. A liderança atual não quer que Marwan seja libertado – falo de um pequeno grupo dentro da liderança do Fatah que se beneficia da situação atual. Mas as massas do Fatah são as mais próximas de Marwan. Ele é filho desse movimento.
E depois de 7 de outubro, a ocupação revelou seu verdadeiro rosto, o rosto criminoso. Hoje, Israel impulsiona um exército de colonos sobre a maioria das aldeias, estabelecendo postos avançados em suas terras. Veja o que aconteceu em Turmus Aya, Kafr Malik, Khirbet Abu Falah e outras aldeias: toda noite, colonos entram, incendiando casas, queimando carros e entrando em confronto com o povo.
Tudo isso mostra que nós também somos seres humanos. Nós temos medo – tememos por nossos filhos e nossas vidas, assim como todos os povos do mundo. Hoje há mais de dez mil prisioneiros, de uma população de três milhões na Cisjordânia. Em todos os lugares onde há ocupação, há resistência, e há crimes graves cometidos pelos sionistas. Mas toda essa loucura, toda essa brutalidade, não lhes trará paz. Não há solução exceto a de dois Estados – nada mais.
Primeiro, o povo palestino deve estar unido, e Marwan é o único capaz de fazer isso acontecer. Gaza deve ser reconstruída. Devemos entrar em um processo político para negociar a independência. Marwan é a pessoa mais comprometida em reconstruir a sociedade palestina, combater a corrupção e lançar uma vida democrática genuína. Isso é o que o povo espera de Marwan após sua libertação: que ele os conduza rumo à construção de um Estado moderno.
Como você avalia o caminho para a libertação da Palestina no atual contexto?
O 7 de outubro mudou a questão palestina no mundo: antes disso, a causa estava em declínio, e o mundo estava esquecendo e indiferente ao sofrimento do povo palestino. Agora, a Palestina está visível em todos os lugares, em cada manifestação, nas universidades, nos movimentos estudantis globais, nos governos que caminham em direção ao reconhecimento – França, Grã-Bretanha e outros.
É por isso que temos grande esperança para o futuro. A ocupação certamente terminará; é a última ocupação colonial na Terra. O mundo agora está percebendo a extensão do nosso sofrimento, da nossa opressão. O mundo não nos via nem acreditava em nós antes, mas agora a Palestina está presente em cada lar ao redor do mundo. Isso vem ao custo de muito sangue, sofrimento, mortes e prisões. Ainda assim, tenho certeza de que os palestinos certamente vencerão a batalha.
Os israelenses também perceberão em breve que uma gangue está os conduzindo à ruína econômica e social. Eles verão que estavam enganados. Dezenas de milhares de pessoas e centenas de empresas deixaram Israel desde a guerra. A gangue de Netanyahu não pode oferecer segurança ou paz. A única solução é a negociação. Uma vez eu disse a um oficial de inteligência israelense que invadiu minha casa “procure o seu de Klerk em Israel”, e me referia a Frederik de Klerk da África do Sul, que fez a paz com Mandela. Encontre um líder corajoso que possa fazer a paz. Não temos outra opção senão viver nesta terra e sermos vizinhos iguais.
Como foi o início e o desenvolvimento da trajetória política do seu irmão?
Marwan Barghouti nasceu em 1959. Ele nasceu e cresceu em Kobar, em uma família muito pobre. No começo da vida, com 11 ou 12 anos de idade, ele viveu seu primeiro problema com a ocupação israelense. Nós morávamos em uma casa um pouco afastada da aldeia, então tínhamos um cachorro que nos protegia como família, já que nosso pai não estava no país – ele trabalhava no Líbano, na época do início da ocupação. Uma patrulha do exército entrou em Kobar, atirou no cachorro e o matou. Esse foi o primeiro choque de Marwan com a ocupação.
Depois, durante os anos de ensino médio, em Birzeit – uma escola bem conhecida por seu ativismo e frequentes manifestações –, Marwan estava sempre presente. Ele foi detido várias vezes por um ou dois dias com os estudantes e depois libertado. Em 1978, ele foi preso pela primeira vez e sentenciado a quatro anos. Permaneceu na prisão por quatro anos e meio. Durante esse tempo, ele concluiu o ensino secundário (o “tawjihi”), aprendeu hebraico fluentemente, e também inglês. Ele foi libertado em 1983 e ingressou na Universidade de Birzeit, permanecendo lá até 1987.
Lá, participou das eleições estudantis e se tornou presidente do conselho estudantil da universidade. Foi uma das forças motrizes por trás de protestos e eventos. Em 1987, ele foi preso e deportado para a Jordânia, onde continuou trabalhando com a Intifada nos territórios ocupados até 1994. Retornou em 1994, após os Acordos de Oslo, com a Autoridade Palestina, vindo da Tunísia e da Jordânia para a Palestina, que estava sob a administração de Yasser Arafat.
E a partir daí?
Em 1996, Marwan foi eleito membro do parlamento, parte do Conselho Legislativo, e se tornou o líder do movimento Fatah na Cisjordânia. Também em 1997, concluiu um mestrado na Universidade de Birzeit; sua dissertação foi sobre as relações franco-palestinas. Ele continuou até 2000, quando a Segunda Intifada estourou e ele se tornou um de seus líderes de campo, um símbolo da revolta.
Em 2002, ele foi preso e sentenciado à prisão perpétua. Obteve um doutorado enquanto estava preso, pela Universidade do Cairo. Além disso, criou uma “universidade” dentro da prisão, ensinando detidos tanto em nível de bacharelado quanto de mestrado, e dezenas de seus alunos se formaram.
Seu julgamento foi injusto: ele foi preso em território ocupado e levado a um tribunal civil em Tel Aviv, apesar de ser um legislador com imunidade parlamentar – algo proibido pelo direito internacional. Muitos advogados franceses e membros do parlamento da França, da Grã-Bretanha e da África do Sul compareceram às sessões do julgamento, que se arrastou por cerca de dois anos.
Em 2006, Marwan redigiu um documento importante para a unidade nacional palestina, o Documento dos Prisioneiros. Ele continuou trabalhando dentro da prisão, mantendo contato com o povo palestino. Nas eleições de 2005-2006, foi eleito para o parlamento. Em 2009, foi eleito para o órgão de liderança mais importante da Fatah, o Comitê Central.
Produção e tradução: Ruayda Rabah e Narjess Al-Dirani























