Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A recente demissão de um assistente de ensino do Colégio Bandeirantes, em São Paulo, e o rompimento do contrato do Theatro Municipal de São Paulo com a Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes) nesta semana reacenderam a preocupação entre professores e editores com a perseguição a qualquer discussão sobre a questão palestina.

Opera Mundi ouviu relatos que ligam a atuação de entidades sionistas dentro das esferas de ensino e cultura. O historiador israelense Ilan Pappe, um duro crítico da doutrina sionista, durante sua fala na Flip (Festa Literária de Paraty), afirmou que houve pressões contra os organizadores para que ele não falasse no evento, em que lançou o livro A maior prisão do mundo: uma história dos territórios ocupados por Israel na Palestina (editora Elefante).

Shajar Goldwaser, membro do coletivo Vozes Judaicas por Libertação, disse ser “evidente” a atuação de instituições pró-Israel na área da educação e cultura. “A gente tem certeza, e não por convicção, mas por provas expostas pelas próprias instituições, como a StandWithUs ou a Conib, que fazem questão e se orgulham dessa atuação. Isso revela um método, os espaços onde essas organizações procuram atuar”, afirmou.

Segundo ele, o lobby sionista está ativo nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na tentativa de bloquear quaisquer campanhas que prejudiquem os interesses, sobretudo os financeiros e comerciais de Israel. “Claramente existe uma atuação nessas esferas. Além de ter uma postura defensiva no sentido de impedir atividades do movimento de solidariedade ao povo palestino, também há um movimento de avançar legislação que favoreça um arcabouço jurídico que possa impor uma censura a qualquer tipo de crítica ao Estado de Israel”, afirmou.

Goldwaser mencionou a adoção, pela Prefeitura e pelo Estado de São Paulo, da definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto (IHRA), compreendida internacionalmente por especialistas como a “responsável por cercear a liberdade de expressão e impedir as críticas aos Estados relevantes”. O governo federal, por outro lado, deixou, no final de julho, a organização.

Escolas em São Paulo

A StandWithUs Brasil, sucursal brasileira da entidade norte-americana de apoio à política do Estado israelense, possui uma iniciativa com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP), administrada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), para promover ações em escolas públicas da rede estadual de ensino médio sobre o combate ao antissemitismo.

Parte do “Programa Sala de Leitura”, instituído em 2009, enfatiza o combate ao “extremismo”, além de “casos de antissemitismo e apologia ao nazismo no Brasil”, conforme diz a pasta.

“É através desse discurso de combate ao antissemitismo que eles adentram essas escolas e promovem todo esse conjunto de ideias, que passa pela legitimação do genocídio da Palestina, mas que se extrapola e permite também esse tipo de argumentação com o objetivo do desmantelamento da educação pública como um todo”, criticou Goldwaser.

De acordo com Francivaldo Nunes, presidente da Associação Nacional de História (Anpuh), não é possível “ter qualquer avaliação positiva quando se trata de ações intervencionistas nos espaços escolares”. A Opera Mundi, Nunes repudiou as ações lobistas e ideologizastes, pois “abortam a criatividade e o protagonismo” dos estudantes.

O presidente da Anpuh-São Paulo, Everaldo Andrade, que é também professor do Departamento de História da USP (DH-USP), também criticou as políticas promovidas pelo governo do estado de São Paulo, que incluem a diminuição da carga horária da matéria História nas escolas, além de práticas que incentivam a perseguição a professores.

“O atual governador manifesta-se publicamente com o uso de símbolos, como a bandeira do Estado de Israel, e, neste sentido, iniciativas como as aulas sobre combate ao antissemitismo podem ser vistas como mecanismo s para disseminar a doutrina autoritária sionista. Essa doutrina tem sido utilizada para justificar políticas consideradas de genocídio e apartheid contra o povo palestino em Gaza. Essas ações revelam um movimento articulado para institucionalizar a difusão do sionismo”, avalia.

Sobre o caso do Colégio Bandeirantes, o presidente da Anpuh-São Paulo disse que o conceito de antissionismo tornou-se um instrumento político pelo Estado de Israel “como ferramenta ideológica para justificar políticas de colonização e limpeza étnica em territórios palestinos ocupados”. Para ele, a interdição do tema em institutos educacionais tem como objetivo “censurar o debate historiográfico e manipular os conteúdos das aulas de História em particular para falsificar um passado incômodo”, já que “o Estado de Israel foi construído expulsando e colonizando terras dos palestinos.”

Aula da StandWithUs na Mooca

Atualmente afastado das funções acadêmicas, o jornalista Alexandre Linares também é professor de sociologia concursado da rede estadual de ensino. Ele relatou ter lecionado, em 2018, em uma escola de tempo integral onde teve “uma experiência clara do funcionamento do lobby sionista”.

O docente informou que tinha acabado de ingressar na Escola Estadual MMDC, no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo, onde foi surpreendido pela visita “surpresa” de André Lajst, diretor da StandWithUs, entidade que promove o discurso pró-Israel para o que classificou de “doutrinação sionista”.

“Minha suposição é que tenha feito uma proposta de fazer uma pregação da doutrina sionista [na rede estadual]. Evidentemente eu e outros professores enfrentamos Lajst, porque foi uma sequência de mentiras. […] Um vídeo da apresentação dele terminou com uma bandeira nazista, buscando afirmar que os palestinos são nazistas”, contou, sobre a palestra. “No Brasil, o lobby genocida tem ganhado espaço principalmente com a tentativa de cerceamento de qualquer debate sobre o tema”, disse Linares.

Sindicatos e entidades acadêmicas denunciam interferência pró-Israel em escolas
Wikimedia Commons/Zachi Evenor

‘Destruiu a minha vida toda’

As demissões sob a acusação de antissemitismo não são um fenômeno de 2025. Um exemplo disto é o caso de Rawa Alsagheer, que atualmente coordena a Rede Samidoun, de Solidariedade aos Prisioneiros Palestinos no Brasil e na América do Sul.

Em abril de 2023, Alsagheer foi contratada pelo Museu da Imigração em São Paulo, tornando-se a primeira refugiada a trabalhar no instituto. Contudo, em 10 de outubro, três dias após o ação da resistência palestina contra Israel, em 7 de outubro de 2023, o museu passou a receber e-mails que a acusavam de “terrorismo e antissemitismo”. Nos dias posteriores, a ativista relatou que pediu para que as autoridades do instituto emitissem um boletim de ocorrência.

“Foi aqui que começou o tratamento horroroso pela gestão, até questionaram os movimentos que eu faço parte, algo que não tem nada a ver com a minha profissão”, afirmou a Opera Mundi. Segundo ela, o museu já tinha conhecimento prévio de sua atuação na coordenação da rede palestina Samidoun.

No final daquele outubro, Alsagheer se deparou com suas fotos e vídeos sendo expostos nas redes sociais por páginas da extrema direita que, por sua vez, mencionavam o Museu da Imigração e questionavam o instituto sobre os critérios de sua contratação.

Em 7 de novembro de 2023, a ativista foi desligada do museu. A justificativa foi que ela não conseguia “cumprir as tarefas”. Depois disso, a pressão contra ela não arrefeceu. “Hackearam meu notebook, invadiram todas as lives que fazia. Não era o museu, obviamente. Não sei quem.”

Outro lado

No comunicado que anunciou o cancelamento da Flipei, o diretor do Theatro Municipal de São Paulo escreveu que  medida “se fundamenta na constatação de que o evento possui conteúdo e finalidade de cunho político ideológico, o que contraria os princípios de neutralidade e impessoalidade que regem a administração pública”.

O Colégio Bandeirantes emitiu nota afirmando que a comparação feita entre sionismo e nazismo nas redes sociais pelo auxiliar de ensino demitido é uma conduta “inaceitável” e que “não reflete os valores da instituição”. Opera Mundi questionou o colégio se a instituição “adotava a definição de antissionismo do IHRA, recentemente abandonada pelo governo brasileiro” e se o auxiliar chegou a ser ouvido antes do desligamento. O colégio disse que não voltaria a tratar do assunto.