‘Célula de Legitimação’: Israel usa inteligência para associar jornalistas ao Hamas e validar execuções
Criado após 7 de outubro, grupo faz parte das IDF e vasculha Gaza em busca de material para reforçar narrativa israelense sobre a guerra, revela +972 Magazine
Uma investigação da revista independente +972 Magazine revelou a existência de uma unidade israelense intitulada Célula de Legitimação, cuja função é vincular jornalistas de Gaza ao Hamas para justificar seus assassinatos, como ocorreu com o repórter da Al Jazeera Anas al-Sharif e seus outros cinco colegas de profissão nesta semana.
O texto afirma que Israel “trata a mídia como um campo de batalha” e utiliza desse “esquadrão secreto de inteligência do exército para vasculhar Gaza em busca de material que reforce a hasbara israelense [termo hebraico que refere-se a propaganda e imagem pública de Israel”. Em outras palavras, a motivação da Célula de Legitimação são as relações públicas.
De acordo com a reportagem investigativa, escrita por Yuval Abraham, jornalista e cineasta baseado em Jerusalém que foi vencedor do Oscar de Melhor Documentário por um filme sobre a ocupação israelense na Cisjordânia, a Célula de Legitimação é uma unidade especial das Forças de Defesa Israelenses (IDF, na sigla em inglês, como é chamado o exército do país].
Com base nos relatos de três fontes de inteligência que falaram à +972 Magazine e ao portal Local Call, parceiro da revista independente que produz conteúdo jornalístico independente sobre Israel e a Palestina, a unidade foi criada após o 7 de outubro de 2023 e tem como objetivo final reforçar a imagem de Israel na mídia internacional.
“A unidade foi designada para identificar jornalistas baseados em Gaza que poderiam ser retratados como agentes secretos do Hamas, em um esforço para conter a crescente indignação global com o assassinato de repórteres por Israel”, escreveu Abraham.
“Motivados pela raiva de que repórteres baseados em Gaza estivessem manchando o nome [de Israel] diante do mundo, seus membros estavam ansiosos para encontrar um jornalista que pudessem vincular ao Hamas e marcar como alvo”, relatou uma das fonte à publicação.
Na prática, sempre que as críticas contra Israel se intensificam na mídia internacional, a Célula de Legitimação é ordenada pelo próprio governo Benjamin Netanyahu a encontrar informações que pudessem combater essas críticas.
“Se a mídia global está falando sobre Israel matando jornalistas inocentes, então imediatamente há uma pressão para encontrar um jornalista que possa não ser tão inocente — como se isso de alguma forma tornasse aceitável matar os outros 20”, disse a fonte de inteligência à +972 Magazine.
De acordo com as declarações, até mesmo funcionários da inteligência fora da Célula de Legitimação foram instruídos a sinalizar “qualquer material que pudesse ajudar Israel na guerra de informação”. Uma das fontes inclusive revelou uma frase constantemente falada pelos superiores: “Isso é bom para a legitimidade”.
Contudo, a instrução de encontrar informações em Gaza não era o único trabalho da unidade porque havia a possibilidade de que as informações encontradas não fossem as mais adequadas à narrativa israelense sobre a guerra.

Anas al-Sharif, correspondente da Al Jazeera morto por Israel no domingo (10/08)
Repórteres Sem Fronteiras
Diante disso, a investigação revelou que “em pelo menos um caso a Célula de Legitimação deturpou informações de inteligência de uma forma que permitiu a falsa representação de um jornalista como membro da ala militar do Hamas”.
“Eles estavam ansiosos para rotulá-lo como alvo, como terrorista — para dizer que não havia problema em atacá-lo. Eles disseram: durante o dia ele é jornalista, à noite ele é comandante de pelotão. Todos estavam entusiasmados. Mas houve uma série de erros e atalhos. No final, eles perceberam que ele realmente era um jornalista”, declarou a fonte de inteligência.
“Semelhante manipulação” ocorreu no caso de Al-Sharif, morto em um ataque de Israel contra uma tenda de jornalistas da Faixa de Gaza na noite do último domingo (10/08).
“De acordo com os documentos divulgados pelas IDF, que não foram verificados de forma independente, ele foi recrutado para o Hamas em 2013 e permaneceu ativo até ser ferido em 2017 — o que significa que, mesmo que os documentos fossem precisos, eles sugerem que ele não desempenhou nenhum papel na guerra atual”.
Célula de Legitimação também tinha como objetivo “prolongar a guerra”
Outra função da unidade seria investigar o uso de escolas e hospitais na Faixa de Gaza pelo Hamas para fins militares e sobre lançamentos fracassados de foguetes que feriram civis no enclave. Ou seja, motivos que justificassem a continuidade da guerra por Israel.
Nesta função, uma das primeiras tarefas executadas pela Célula de Legitimação foi em 17 de outubro de 2023, quando um ataque israelense matou 500 palestinos em uma explosão contra o hospital Hospital Al-Ahli, na Cidade de Gaza. Enquanto a mídia internacional noticiou o ataque citando o Ministério da Saúde de Gaza e responsabilizando Israel, autoridades israelenses afirmaram que a explosão foi causada por um foguete da Jihad Islâmica que falhou, além de alegar que o número de mortos foi muito menor.
De acordo com a +972 Magazine, no dia seguinte à explosão, as IDF divulgaram uma gravação que a Célula de Legitimação havia localizado em interceptações da inteligência israelense. O conteúdo foi apresentado como uma ligação telefônica entre dois agentes do Hamas, atribuindo o incidente a um erro da Jihad Islâmica. A gravação foi usada como notícia pela imprensa internacional, o que “representou um duro golpe para a credibilidade do Ministério da Saúde de Gaza e uma vitória para a célula”.
“A equipe coletava regularmente informações como um estoque de armas [do Hamas] [encontrado] em uma escola — qualquer coisa que pudesse reforçar a legitimidade internacional de Israel para continuar lutando. A ideia era [permitir que as IDF] operassem sem pressão, para que países como os Estados Unidos não parassem de fornecer armas”, detalharam as fontes.
Após a publicação do artigo, fontes oficiais de segurança confirmaram à +972 Magazine e à Local Call que desde o 7 de outubro de 2023, foram criadas “várias equipes de pesquisa” na inteligência militar israelense com o objetivo de “expor as mentiras do Hamas”, “desacreditar” jornalistas que reportavam a guerra “de forma supostamente confiável e precisa, mas que faziam parte do Hamas”.
Segundo as fontes, essas “equipes de pesquisa” não desempenham nenhum papel na seleção de alvos individuais a serem atacados, como no caso de Al-Sharif.
As IDF também se posicionaram à revista sobre o assassinato de Al-Sharif. De acordo com um porta-voz, “as IDF atacaram um terrorista da organização terrorista Hamas que estava operando sob o disfarce de jornalista da rede Al Jazeera no norte da Faixa de Gaza” e afirmou que o exército “não prejudica intencionalmente indivíduos não envolvidos e jornalistas em particular, tudo de acordo com o direito internacional”.























