Por dentro dos territórios palestinos ocupados
Por dez dias, delegação feminina da Campanha Escocesa de Solidariedade com a Palestina visitou regiões sufocadas pelo apartheid israelense
Opera Mundi inicia com esta reportagem uma série de três capítulos sobre os assentamentos ilegais de Israel na Cisjordânia.
– Parte 2: De patrimônio histórico da humanidade a zona militar israelense
– Parte 3: Para além da Linha Verde
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Em maio de 2025, a Campanha Escocesa de Solidariedade com a Palestina (SPSC) enviou uma delegação de mulheres, composta por seis ativistas, à Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Integrei o grupo para apoiar a produção de conteúdo, testemunhando em primeira mão processos de desapropriação, apartheid e colonialismo que assolam o território ocupado. Foram dez dias navegando pelos territórios palestinos – sitiados desde 1967 pela ocupação militar israelense.
A delegação visitou vilas sufocadas pelo avanço ilegal dos assentamentos de colonos, centros históricos esvaziados pela violência da ocupação, além de campos de refugiados, projetos sociais e organizações da sociedade civil cada vez mais abandonados à própria sorte.
Em contrapartida, o grupo também sentiu o acolhimento dos palestinos, enquanto aprendia com eles o verdadeiro significado da palavra resistência.
O apartheid começa na Jordânia
Desembarcamos na capital da Jordânia, Amã, por volta das 3h da manhã (horário local). Ainda no aeroporto, funcionários sorriam cautelosos ao indicar o caminho até a Ponte Rei Hussein, a cerca de uma hora e meia dali. Pouco frequentada por estrangeiros, a passagem controlada por Israel é o único ponto de entrada e saída, por terra, designado para palestinos da Cisjordânia que viajam para o exterior.
Com aproximadamente cinco quilômetros de extensão, uma faixa de “terra de ninguém” separa os confusos guichês de checagem migratória no terminal jordaniano dos imprevisíveis postos de controle israelense no lado oposto. Paga-se um pedágio e o trajeto, feito de ônibus, é operado por uma empresa especializada.
O sistema de apartheid israelense, e sua normalização, começa a se fazer visível ainda dentro do território controlado pela Jordânia. Categorizados por seus documentos de identificação, palestinos e demais passageiros são conduzidos a transportes coletivos distintos rumo ao terminal Allenby, nos arredores da cidade palestina de Jericó.
“A desumanização dos palestinos é uma força motriz da mentalidade colonizadora sionista”, disse Maren Mantovani, coordenadora de Relações Internacionais da campanha Stop the Wall a Opera Mundi. “A impunidade do Estado israelense e a não-responsabilização de suas ações pela comunidade internacional contribuem para a normalização do sistema de segregação. A travessia pela Jordânia é um exemplo disso”.
Para quem consegue passar pelo escrutínio da imigração israelense, táxis coletivos operados por palestinos aguardam passageiros completarem a lotação de seus assentos, na saída do terminal. Aqui, não se checam documentos antes do embarque. Os viajantes percorrem então as rodovias marcadas pela presença de bandeiras israelenses em pleno território palestino.
Em direção a Jerusalém Oriental, o motorista da van que conduzia a delegação passou todo o trajeto atento a um walkie-talkie que, vez por outra, emitia frases ligeiras em árabe. Em dado momento, todos a bordo foram instruídos a sacarem seus documentos e os manterem visíveis. Minutos depois, o veículo foi parado e inspecionado por soldados israelenses armados.
No alto das montanhas, era possível avistar Ma’ale Adummim, o maior assentamento de colonos em área jurisdicional e terceiro maior em número populacional, que abrange uma vasta faixa de terra no interior da Cisjordânia ocupada. Para viabilizar sua expansão, ilegal aos olhos do direito internacional, centenas de beduínos Jahalin foram expulsos e deslocados.
O assentamento separa a Cisjordânia em dois cantões, impossibilitando o estabelecimento de um Estado palestino viável com continuidade territorial.

Assentamentos Al Masara na Cisjordânia ocupada
Arquivo SPSC
Na Palestina, agricultura é resistência
A delegação escocesa seguiu em direção ao vilarejo de Al-Ma’sara, no sudoeste da província de Belém, onde fiquei hospedada na casa da família Zwahre por alguns dias. Coordenadores de uma iniciativa popular que desafia a apropriação de terras na região, a família de ativistas mantém uma parceria longeva com a SPSC.
Viabilizado por doações internacionais, o sistema de cooperativas busca transformar terras ociosas em campos verdes, resgatando técnicas de cultivo tradicionais, e movimentando a economia local. Impedindo, assim, que essas terras sejam confiscadas pelo Estado israelense e inteiramente assentadas por colonos.
Segundo Mantovani, que também faz parte da Coalizão Palestina de Defesa da Terra (LDC), existem muitas leis que “permitem” a apropriação de terras palestinas. “Muitas são derivadas de regras coloniais ultrapassadas britânicas e otomanas. Uma regra dos otomanos dizia que, se um agricultor deixasse sua terra sem plantio por três anos, ela seria transferida para outro agricultor. Essa regra agora é usada por Israel contra os palestinos, enquanto não medem esforços para impedi-los de cultivar suas terras”.
Al Ma’sara significa “prensa” e remete ao lagar de azeite, da Era Bizantina, que ali sobrevive – não só aos anos, mas às tentativas de apagamento da memória pelo regime de ocupação. A região faz fronteira com uma cadeia de assentamentos cada vez mais interconectados. Hoje, de dentro do vilarejo palestino, é possível avistar seus muros de concreto e construções de estilo europeu, cortando violentamente as idílicas paisagens agrícolas.
“Estamos em guerra contra o tempo”, comentou um agricultor local, certa tarde, sobre o avanço ilegal desse assentamento ao esbarrar com a comitiva escocesa pelas encostas do vale de Al Ma’sara. Ele explicou que é professor, trabalha durante o dia na única escola da região, mas o sentimento de dever com a terra lhe impõe uma jornada dupla.
“É uma escolha estar aqui todo dia, cultivando a terra. Ela carrega em si a resistência palestina e nós precisamos honrá-la”, disse ele antes de se despedir. “Sua presença e solidariedade são bem-vindas em Al Ma’sara e todas as portas da vila estão abertas para vocês”, completou o professor ao convidar o grupo para um café.
“Não estamos à venda”
Nossos dias foram preenchidos pelo cotidiano, marcado pelo isolamento dos moradores de Al Ma’sara e povoados adjacentes. No final de semana após nossa chegada, o filho mais velho da família Zwahre, o documentarista Mohamad, levou a delegação para conhecer Abu Dia e sua família, cuja permanência solitária no que restou do antigo vilarejo de Khirbet ‘Abdeh traz esperança para os palestinos das redondezas.
“Ele é um verdadeiro herói da região”, comentou o cineasta ao entrar na casa. As terras de Abu Dia encontram-se hoje cercadas por uma cadeia de assentamentos, localizadas em um ponto estratégico para a tomada da região por colonos. Um perímetro de 200 metros, estabelecido recentemente pelas forças militares em volta de sua casa, o impede de acessar grande parte de suas terras cultiváveis.

Terras Abu Dia que restaram do antigo vilarejo de Khirbet
A família é constantemente assediada por agentes da ocupação, que oferecem quantias em dinheiro para que saiam dali. Apesar do isolamento, e dos riscos, eles se recusam. No portão eletrônico que dá acesso ao território, instalado com ajuda de seus vizinhos distantes, leem-se as palavras “não estamos à venda” em árabe.
Para Mohamad, que busca visitar a família com frequência, “muita gente está esperando a morte de Abu Dia”. O agricultor de 64 anos está mal de saúde e já transferiu as terras para o nome do filho mais novo, Yaqub, fruto de seu segundo casamento. Uma responsabilidade que pesa sobre os ombros do menino de apenas 12 anos de idade e sua mãe.
Yaqub costumava frequentar a escola em Al Ma’sara, mas desde o início do genocídio israelense em Gaza e o acirramento do cerco militar na Cisjordânia, ele não consegue mais fazer o caminho até lá em segurança. Ao ser perguntado como se sente, contou à delegação que sente falta de brincar com outras crianças.
“É como se eles vivessem numa pequena prisão. É importante que vocês conheçam essa história, e entendam o que está acontecendo aqui. Não podemos deixar que tantos anos de luta e resistência sejam apagados”, disse Mohamad.























