De patrimônio histórico da humanidade a zona militar israelense
Hebron é única cidade palestina com assentamentos dentro de sua malha urbana e que mostra o impacto da militarização no cotidiano da população
Esta é a segunda parte do especial de Opera Mundi sobre os assentamentos ilegais de Israel na Cisjordânia. Leia também a primeira reportagem:
– Parte 1: Por dentro dos territórios palestinos ocupados
– Parte 3: Para além da Linha Verde
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Localizada ao sul de Al Ma’sara, Hebron é listada como Patrimônio Mundial da UNESCO e reconhecida internacionalmente como território palestino ocupado. Foi por lá que a delegação da Campanha Escocesa de Solidariedade com a Palestina (SPSC) se deparou com uma realidade distinta.
Dividida em dois cantões administrativos desde 1997, Hebron é a única cidade palestina com assentamentos dentro de sua malha urbana. Enquanto uma população de 170 mil palestinos habita o setor H1, administrado pela Autoridade Nacional Palestina (ANP), cerca de 30 mil palestinos vivem sob intenso controle militar israelense no setor H2, onde também residem algumas centenas de colonos judeus.
Acompanhada por um guia local, a delegação escocesa percorreu as ruas esvaziadas do centro histórico, testemunhando o impacto da militarização no cotidiano da população palestina que ali vive.
Em setembro de 2024, um relatório da ONU destacou que, dos 793 obstáculos que controlam e restringem o movimento palestino na Cisjordânia, 26% estão na província de Hebron. São cerca de 28 postos de controle, muitos deles fortificados com detectores de metal, câmeras de vigilância e tecnologia de reconhecimento facial, além de instalações para detenção e interrogatório.
Tais restrições transformaram H2 em um vazio econômico. Poucos comerciantes mantêm seus estabelecimentos abertos frente ao acirramento das tensões, causado por frequentes ataques de colonos e violentas incursões militares.
Desde o início dos bombardeios israelense em Gaza e o fechamento do cerco militar aos territórios ocupados, mais de 360 incidentes violentos foram registrados em Hebron.
“Os militares estão aqui para garantir a segurança dos colonos, ainda que eles constituam apenas 3% da população”, declarou o ativista palestino Khalil* que conduzia a delegação naquela ocasião. “Os israelenses não estão interessados em fornecer policiamento, e tampouco garantir a ordem pública como dizem”.

Vias exclusivas na cidade de Hebron
Uma cidade marcada pela violência
Ao estacionar o carro nas redondezas da Mesquita Ibrahimi, cujo acesso não seria simples como imaginávamos, nosso guia chamou a atenção da delegação para a fachada do templo, repleta de bandeiras israelenses. Atualmente, 60% do local é fechado para uso exclusivo de judeus.
A mesquita foi dividida após o massacre de 1994, no qual um colono israelense, nascido nos Estados Unidos, atacou fiéis palestinos, matando 29 pessoas e ferindo outras 150, em pleno Ramadã (período de jejum, oração e reflexão para os muçulmanos). Essa divisão transformou o território em palco de repetidas tensões, com consequências para os residentes palestinos de Hebron.
Para viabilizar a circulação de colonos entre os assentamentos em H2, “residências palestinas e grande parte do tecido urbano foram completamente destruídos para construção de estradas exclusivas”, disse Nuha Dandis, gerente de Operações do Comitê de Reabilitação de Hebron (HRC), em a Opera Mundi. “Vários prédios foram demolidos para permitir que os colonos chegassem à Mesquita Ibrahimi”.
Do estacionamento onde parou a delegação, foi preciso caminhar até o local pelos becos sinuosos do antigo Mercado de Al Khalil (Hebron), marcado pelo abandono. Em sua passagem, nosso grupo atraía o olhar atento de crianças e adolescentes, que pediam para tirar selfies. “As pessoas não estão mais acostumadas com a presença internacional aqui no centro histórico”, comentou o guia ao bater a foto. Ele explicou que, desde 2019, o número de observadores e delegações internacionais, que costumavam popular as ruas da Cidade Velha, no setor H2, diminuiu consideravelmente.
Um componente fundamental, dentro desse contexto, foi a Presença Internacional Temporária em Hebron (TIPH), solicitada pelo Conselho de Segurança da ONU, após o massacre de 1994. Sua atuação na cidade dependia da expedição de um “mandato de permanência” a cada seis meses pelo governo israelense. Em 2019, a missão foi revogada por Benjamin Netanyahu.
A eliminação da TIPH em Hebron faz parte de um amplo projeto de isolamento da Cisjordânia. Sobre o afastamento sistemático de agentes internacionais dos territórios palestinos ocupados, Lubnah Shomali, gerente de Advocacia do Centro de Recursos para os Direitos de Residência e Refugiados Palestinos (BADIL), disse à reportagem: “quando ativistas, defensores e organizações de direitos humanos palestinos perdem proteção internacional por meio de sua presença, tornam-se alvos mais fáceis. Suas vozes, presença e influência se tornam restritas, marginalizadas e reprimidas. A inação da Autoridade Nacional Palestina isola ainda mais esses ativistas e organizações. Sem apoio, suas vozes são constantemente apresentadas como não confiáveis, não oficiais ou extremas”.

Lojas fechadas no Mercado Al Khalil
Militarização da vida cotidiana
Para quem atravessa o Mercado de Al Khalil rumo à Mesquita Ibrahimi e bairros palestinos adjacentes, uma série de catracas eletrônicas, cabines de checagem e barreiras militares os aguarda. O posto de controle Hajez Al Haram é vigiado 24 horas por dia e habitado por unidades especiais da polícia israelense, que decidem sobre seu horário de funcionamento de forma arbitrária.
Após uma breve explicação sobre os processos de anexação que ali ocorrem há décadas, nosso guia, acostumado a conduzir grupos de observadores internacionais pelas redondezas, informou que era hora de voltar. “Essa rua é palco constante de conflitos, não podemos nos demorar”, havia dito antes. Ele se referia à rua localizada imediatamente ao final do complexo Hajez Al Haram, inevitável para os residentes palestinos de H2 que precisam atravessá-la para chegar às suas casas. Dali era possível observar uma realidade aterradora: os assentamentos de Hebron avançam por cima das construções palestinas.
A via funciona também como rota de acesso à Mesquita Ibrahimi para colonos israelenses em geral, já que excursões internacionais ao local são organizadas com frequência pela ocupação. “Em meio a essas excursões, eles aproveitam para atormentar residentes palestinos, depredando suas casas”, comentou o ativista a respeito do violento processo de gentrificação judaica que acontece em Hebron.
A delegação, que parava para interagir com os poucos lojistas palestinos que encontrava pelo caminho, também parece ter chamado a atenção dos agentes da ocupação israelense, que decidiram impedir seu retorno pelo caminho percorrido minutos antes. Com a clara intenção de separar a comitiva escocesa de seu guia, soldados davam ordens para que o grupo seguisse em direções opostas. “Você é mulçumano?” perguntavam incessantemente ao ativista, que desviava das perguntas taxativas com a habilidade de quem já havia passado por isso inúmeras vezes.
“Nós acabamos de passar por aqui”, tentou negociar o camarada palestino, cuja residência no setor H1 não lhe permitiria atravessar a grande maioria dos postos de controle que limitam o acesso entre a Cidade Velha e o restante de H2. “Agora vocês não podem mais”, retrucaram os policiais, que pareciam se divertir com a situação, apesar de estarem sendo filmados por membros da delegação.
Optando por não se separar, e tentar um dos caminhos indicados pelos policiais, não demorou muito para que a comitiva fosse parada novamente. Desta vez por um grupamento de soldados militares, seus uniformes adornados por insígnias que indicavam sua participação direta nos crimes de guerra cometidos por Israel na Faixa de Gaza. “Vocês estão a caminho de uma zona militar fechada”, informaram ao perguntarem cinicamente se a delegação estrangeira estava “curtindo sua passagem por Israel” e se estávamos “nos protegendo do calor adequadamente”.
Após o breve interrogatório, os militares ordenaram que o grupo retornasse e continuasse negociando sua passagem com os policiais de Hajez Al Haram debaixo do sol a pino. A dinâmica se repetiu. Cerca de uma hora se passou até que ambos os grupos cansaram da brincadeira, permitindo que a delegação seguisse, agora em direção ao longínquo checkpoint 160, na divisa entre os dois setores.
Percorrendo a pé rodovias exclusivas para colonos, o grupo atravessou o posto de controle que dava acesso ao setor H1. No cantão administrativo controlado pela ANP, a comitiva caminhou, em torno de 45 minutos, até encontrar táxis que a levassem de volta ao estacionamento na entrada do Mercado de Al Khalil, em H2.

Pontos de restrições controlados pelas forças israelenses
Preservação do patrimônio histórico e resiliência palestina
Sobre o ostensivo aparelhamento militar no centro histórico, Nuha Dandis afirmou a Opera Mundi: “todas as suas ações e violações apontam claramente para uma tentativa de despojar esta cidade de sua identidade islâmica.”
O Comitê de Reabilitação de Hebron é responsável pela manutenção e restauração de prédios históricos no coração da Cidade Velha. “Priorizamos edifícios localizados nas redondezas dos postos avançados de assentamentos, impedindo seu avanço ilegal e apoiando a resiliência dos residentes palestinos. Sofremos com a prisão e detenção de nossos trabalhadores e restauradores. Em muitos casos, ordens militares interrompem completamente nossos projetos de restauração, com consequências desastrosas para os prédios em si e seus moradores”.
* nome alterado para proteger a identidade da fonte.























