Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Amanhece em Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina, nesta sexta-feira (11/07). Há exatos 30 anos, os bosníacos, bósnios pertencentes a um grupo étnico de origem muçulmana, se tornavam vítimas do genocídio de Srebrenica, cidade a cerca de 150 quilômetros de Sarajevo.

Três décadas depois, o trauma e luto coletivos e intergeracionais ainda se fazem presentes no país.

Para marcar a data, dezenas de bósnios caminharam em silêncio no centro histórico de Sarajevo, na noite de quinta-feira (10/07), 10 de julho, empunhando bandeiras da Bósnia e flores brancas de centro verde, símbolo de memória e resistência diante do genocídio de Srebrenica.

Sem quaisquer palavras de ordem ou músicas, a marcha em Sarajevo foi marcada por outro aspecto emblemático: a maioria dos manifestantes usava keffiyehs, o tradicional lenço preto e branco associado à resistência palestina, enquanto empunhavam bandeiras palestinas e carregavam cartazes que traziam paralelos entre os eventos de Srebrenica, há 30 anos, e os acontecimentos atuais em Gaza: o assassinato de crianças, a negligência da comunidade internacional e a sua insistente recusa em nomear os crimes pelo que são: genocídio.

Bosníacos marcham em silênco para homenagear vítimas do genocídio em Srebrenica
Giovanna Vial

Anatomia de um genocídio

O genocídio de Srebrenica se refere ao episódio em que ao menos 8.372 pessoas foram assassinadas em julho de 1995 pelas tropas do Exército da República Srpska (VRS), unidades militares sérvias na Bósnia, sob o comando direto do Ministério do Interior da Sérvia.

Entre as vítimas, em sua maioria homens e meninos, estavam cerca de 600 mulheres e meninas. A vítima mais idosa encontrada em uma vala comum tinha 94 anos, enquanto a mais jovem era uma recém-nascida e viveu apenas por alguns momentos.

Srebrenica foi parte de uma campanha mais ampla de genocídio e perseguição sistemática contra os bosníacos que começou em 1992, após a declaração de independência da Bósnia em relação à antiga Iugoslávia.

Pouco depois da independência, a Bósnia foi atacada pela Sérvia e Montenegro (ainda chamada de Iugoslávia na época) sob a liderança do então presidente Slobodan Milošević. Esse mesmo regime já havia conduzido guerras contra a Eslovênia, a Croácia, e posteriormente também conduziria uma guerra contra a região de Kosovo.

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Embora as guerras pós-Iugoslávia tenham sido majoritariamente iniciadas pela Sérvia e Montenegro, vale destacar que, em 1993, a Croácia também lançou operações militares dentro do território da Bósnia.

Durante a guerra na Bósnia, reconhecida internacionalmente como uma guerra de agressão – conflito iniciado por um Estado com o objetivo de invadir, dominar ou ocupar outro território de forma ilegítima, violando o Direito Internacional – 104 mil pessoas morreram, a maioria delas bosníacos.

Antes do genocídio, Srebrenica esteve sob cerco sérvio entre 1992 e 1995. Durante esse período, mais de 2 mil pessoas foram mortas por bombardeios, fome e tiros de franco-atiradores. Além disso, civis bosníacos em outras partes da Bósnia (incluindo mulheres, crianças e idosos) foram mantidos em uma rede sistemática de campos de concentração, onde foram torturados, submetidos à fome, estuprados e assassinados.

Keffiyehs e bandeiras palestinas estiveram presentes no ato em Sarajevo
Giovanna Vial

De Srebrenica à Gaza

As manifestações pró-Palestina não são novidade na Bósnia, mas neste ano, os moradores de Sarajevo fizeram questão de vincular o 30º aniversário do genocídio de Srebrenica à marcha contra o genocídio em curso em Gaza.

Existe uma similaridade religiosa no fato de que tanto as vítimas de Srebrenica quanto as de Gaza são majoritariamente muçulmanas, além da presença do Islã como eixo da construção do inimigo, do outro, do suposto incivilizado não-humano a ser combatido, contido e, em última instância, eliminado.

Essa semelhança pode parecer o elo mais evidente entre os dois episódios. Contudo, para muitos bósnios, a necessidade de evocá-los em paralelo vai além.

“O que queremos transmitir vai muito além da semelhança de sermos muçulmanos”, relatou Ena Ibrahimovic, jovem bósnia estudante de medicina que participava da marcha em Sarajevo, à reportagem de Opera Mundi. “Nosso ponto de partida aqui é a humanidade”.

Para Edin Sarić, arquiteto bósnio de 35 anos, “há muitas semelhanças entre os dois genocídios, especialmente em relação à perseguição sistemática, à desumanização, à discriminação e aos métodos planejados de extermínio em massa”.

“O mais aterrador, para mim, é o fato de que o mundo inteiro está assistindo a esses assassinatos brutais e crimes novamente, agora com mais detalhes, em escala ainda maior e de forma muito mais acessível por conta das redes sociais e da internet, e ainda assim decide não fazer nada, optando pelo silêncio. Mas desta vez, não podendo sequer alegar que ‘não sabia o que estava acontecendo’, como talvez se pudesse dizer há 30 ou 80 anos atrás”, disse o bósnio.

Edin chamou atenção, ainda, para o perigo que existe na simplificação de acontecimentos como os de Srebrenica e Gaza a partir do ponto de vista da religião.

“Dizer que o que aconteceu na Bósnia-Herzegovina ou na Palestina foi ou é uma guerra entre religiões nada mais é que uma desculpa, uma simplificação e uma justificativa para crimes cometidos dentro e fora de casa”, explicou.

Tanto no caso da Bósnia quanto no da Palestina, simplificar os acontecimentos sob a lente de “conflitos religiosos” parece ser um mecanismo para desviar a atenção dos verdadeiros motivadores do crime de genocídio: o ultranacionalismo, o militarismo, os projetos expansionistas, a violência de Estado deliberadamente orquestrada e guerras de agressão, cuidadosamente planejadas com a intenção de eliminar um povo de seu próprio território.

Cartazes marcaram comparação entre os genocídios na Bósnia e na Palestina
Giovanna Vial

Luto, memória coletiva e responsabilização penal internacional

Na percepção de Ena Ibrahimovic, as três décadas que se passaram desde o genocídio de Srebrenica apenas aprofundaram o luto, tanto da geração que vivenciou os horrores de 1995 quanto das que vieram depois.

Além disso, escancaram a clivagem ainda presente na Bósnia e na região entre aqueles que buscam um processo coletivo de cura e aqueles que seguem insistindo na negação do genocídio. “Continuamos a enterrar corpos todos os anos”, disse a jovem.

Para Edin, o paralelo entre Srebrenica e Gaza deve gerar reflexão sobre a repetição de processos que podem e deveriam ser evitados pela comunidade internacional.

“Quando se trata de ambos os genocídios (na Bósnia em 1995 e agora na Palestina), os atos em si foram precedidos por inúmeros crimes que se repetiram por meses e anos, o que levou à normalização do assassinato, à simplificação excessiva e, sobretudo, à desumanização das vítimas tanto aos olhos do mundo quanto dos próprios executores. O genocídio é o estágio final de todo esse processo”, explicou.

Segundo o arquiteto, “nos casos de genocídio na Bósnia-Herzegovina e do Holocausto, posso afirmar com certeza que a responsabilização criminal não significa nada se não houver uma catarse sistêmica. Basta observar o que acontece na própria Bósnia hoje: mesmo após o genocídio e inúmeras sentenças judiciais, se o sistema, ou parte dele, nega ou se recusa a aceitar as condenações, essas decisões acabam sendo apenas letra morta”.

“Também acredito que essas sentenças deveriam ser incorporadas ao direito local e internacional como forma de ensinar às novas gerações o que aconteceu, para que jamais se repita, ao contrário do que vemos hoje, por exemplo, na Alemanha, que tem sido seletiva em relação às vítimas e, mais uma vez, se posiciona do lado errado da história”, conclui Edin.