Trabalhadores do maior centro de processamento de algodão do Benin denunciam ‘falsa industrialização’
Relatos revelam precariedade nas condições de trabalho na Zona Industrial Glo-Djigbe, ligada ao governo de Patrice Talon
Trabalhadores trancados para dentro da fábrica, sendo obrigados a fazerem horas extras para terem o direito de sair do local. Essa realidade chocante não diz respeito a uma pequena fábrica, mas sim ao maior centro de processamento de algodão do Benin, país da África do Oeste.
Criada em 2020, a Zona Industrial Glo-Djigbe, popular GDIZ, é um vasto distrito industrial a 45 quilômetros de Cotonou, a capital econômica do país. O parque é fruto de uma parceria entre o governo do Benin e a Arise IIP, criada pelo magnata indiano Gagan Gupta, ex-diretor e membro do comitê executivo da Olam, gigante do agronegócio mundial.
O episódio ocorreu em 9 de maio deste ano. Quase cinco meses depois, o Brasil de Fato conversou com alguns dos trabalhadores que participaram do protesto após serem trancados. Eles ainda trabalham no complexo e não quiseram ser identificados.
“Era o turno que trabalhava das 15h às 23h45. Eles terminaram de trabalhar às 23h45, precisavam voltar para casa e os gerentes disseram que eles teriam que fazer mais duas horas extras, o que significa que eles continuariam chegando à 1h45 da manhã antes de voltar para casa. Não há segurança na estrada. Eles não informaram aos pais ou às famílias que voltariam depois da 1h da manhã”, revela um dos operários.
“Então, os colegas se recusaram a fazer horas extras a mais, e por isso foi dado a ordem para a segurança bloquear o portão, dizendo que todos deveriam fazer as horas extras, que era uma demanda urgente e que seriam obrigados a fazer essas horas”, completa.
“Quando a mão de obra é escrava, o país não ganha nada”
A criação do parque industrial veio do desejo do Presidente Patrice Talon em transformar o “ouro branco” localmente, impulsionando a produção e a exportação de roupas 100% beninenses. Na GDIZ, é transformado cerca de 40 mil toneladas de algodão por ano, segundo a empresa, além de sete a dez milhões de peças de vestuário por ano.
O Benin disputa com o Mali o título de maior produtor de algodão da África. O país exporta principalmente fibras brutas para processamento no exterior para países como Bangladesh e China, os maiores exportadores mundiais de vestuário.
De acordo com dados do Programa Regional para a Produção Integrada de Algodão na África, o país da África do Oeste deverá produzir 669 mil toneladas de algodão durante a temporada 2024-2025.
Essa “revolução industrial”, no entanto, é contestada por Nagnini Kassa Mampo, Secretário Geral da Confederação Sindical dos Trabalhadores do Benin.
“Talon criou a zona industrial de Glo-Djigbe, onde estão instaladas empresas estrangeiras que fabricam produtos para o exterior e não para o Benin, talvez numa percentagem reduzida, mas a maior parte é para o exterior. Ele criou as condições para favorecer essas empresas estrangeiras que certamente vão fazer concorrência desleal nos seus países, porque aqui têm mão de obra gratuita a 52 mil francos CFA, que nem sequer é suficiente para todo mundo”, explica o sindicalista.
Segundo o relato de Mampo, durante um período de 17 anos as empresas que atuam na GDIZ estão isentas de pagar taxas alfandegárias.
“Isso não é a industrialização do país. A industrialização do país significa que as indústrias pertencem ao país. É para o país que as pessoas trabalham, E, na verdade, a mão de obra lá não é uma mão de obra normal, é uma mão de obra escrava e, quando a mão de obra é escrava, o país não ganha nada”, afirma o dirigente.
Calor extremo e renda insuficiente
Esse outro trabalhador da GDIZ foi atraído pela promessa de salários de 100 mil francos CFA. Hoje ele recebe 52 mil francos, o equivalente a R$ 495.
Pai de dois filhos, ele conta que o valor é insuficiente para cobrir as despesas básicas, como alimentação e aluguel, que, segundo ele, custa em torno de R$ 200 mensais. Para ele, esse salário mal dura duas semanas.
“Produzimos pelo menos 1 mil a 1.200 peças de roupa por dia. Quando você pega uma camisa polo, por exemplo, durante oito horas produzimos pelo menos 700, 800 ou até 900 polos por dia. E ainda nos obrigam a ir além e nos esforçamos todos os dias para melhorar a produção”, lamenta.
“As condições não nos convêm. O salário é insuficiente, as condições são miseráveis. Quando você chega, não consegue sair. Mesmo quando você tem uma emergência e liga dizendo que há uma emergência em casa, não é fácil deixar você sair. Nós não estamos em um campo militar. Você entende?”, completa.
Este outro trabalhador que também atua na costura de roupas detalha as condições do ambiente de trabalho, as quais ele chama de miseráveis. Entre as irregularidades, ele enfatiza o calor extremo no ambiente da fábrica e a ausência de cuidados médicos adequados.

Trabalhadores da GDIZ relatam que salário de 52000 francos CFA mensais não dura duas semanas
Pedro Stropasolas/Brasil de Fato
“Colocam dois ventiladores para cerca de 50 pessoas, isso não adianta. Ficamos com muito calor com as máquinas ligadas. É um calor terrível. O calor pode matar as pessoas. Tem pessoas que abandonam por conta do calor”, relata.
“Eles vem apenas para aproveitar nossa força de trabalho. É isso que eu acabei entendendo. E isso não nos convém. As pessoas desistem todos os dias. Há recrutamentos todos os dias. Se você sair, alguém vai substituí-lo, porque no Benim a juventude sofre. Muitos não têm nem o que comer”, complementa.
A denúncia sobre o trancamento dos trabalhadores dentro da GDIZ foi exposta em um vídeo publicado na página do jornal La Flamme, ligado ao Partido Comunista do Benin, hoje uma das principais forças de oposição ao governo de Talon.
De acordo com os trabalhadores ouvidos pela reportagem em condição de anonimato, os dois funcionários que aparecem expondo a situação no vídeo foram demitidos dias depois.
A Confederação Sindical dos Trabalhadores do Benin relata que a supressão de liberdades democráticas e a perseguição de opositores é a tônica da governança do atual líder do país.
“Com os impostos e as taxas deste governo, a vida ficou cara, as pessoas estão morrendo de fome e, se protestam, são reprimidas, colocadas na prisão”, lamenta Nagnini Kassa Mampo.
O homem mais rico do Benin
Patrice Talon é presidente da República desde 6 de abril de 2016 e é considerado o homem mais rico do país. A fortuna avaliada em US$ 400 milhões foi construída justamente no setor do algodão, a partir da privatização de fábricas que antes pertenciam ao Estado.
Em 1990, seguindo as recomendações do Banco Mundial dentro do acordo de liberalização econômica implementado nos países da África do Oeste, Talon ganhou o mercado de implantação de três indústrias de descaroçamento do produto no país.
Após a eleição presidencial de Thomas Yayi Boni, um banqueiro de orientação pró-mercado, em 2006, a influência do magnata e atual presidente na economia do país aumentou.
Dois anos mais tarde da eleição de Boni, em um momento de queda dos preços internacionais do algodão, Talon ganhou a licitação para a privatização de toda a divisão algodoeira da Sociedade Nacional de Promoção Agrícola, a Sonapra, a principal empresa do estado do Benin no setor.
Nesse momento, o empresário passou a ser o proprietário de 15 das 18 usinas de processamento existentes no país, uma posição de quase monopólio.
“Tiraram as fábricas do Estado e deram para ele. Foi assim que ele enriqueceu até se tornar bilionário. E, hoje, quando se tornou presidente, ele tem o monopólio de todo o setor privado e agora também do público, então continua a enriquecer. Ele diz que não é mais o chefe, quando na verdade ele ainda é o chefe, porque deu as coisas para seus amigos e seus parentes. Mas essas pessoas trabalham para ele”, explica Mampo.
Expansão de zonas industriais público privadas na África
Em um encontro com empresários franceses em 2022, Patrice Talon destacou as reformas implementadas para atrair investimento estrangeiro ao país. Sob aplausos, ele destacou a flexibilização das leis trabalhistas e as restrições ao direito de greve.
“Fizemos algo notável. Flexibilizamos bastante as regras, a legislação trabalhista. Eu diria até que desregulamentamos totalmente o ambiente de trabalho. No Benin, você pode empregar alguém com contratos por tempo indeterminado” destacou o chefe de estado do país.
Sobre o direito à greve, Talon declarou que ela é “proibida em alguns setores vitais” e disse, face aos empresários franceses, que ela “é limitada a no máximo dois dias por mês e dez dias por ano”, o que ele mesmo reconheceu que é “um certo retrocesso em relação às conquistas e à democracia”, declarou.
O aliado do chefe de estado beninense, o presidente francês Emanuel Macron celebrou o projeto da Zona Industrial de Glo-Djigbé (GDIZ), em um relato que consta na própria página oficial do centro de processamento.
Sem tecer nenhum comentário sobre as condições de trabalho dentro do local, Macron disse que “o projeto da GDIZ está a posicionar o Benim no caminho para uma economia industrial e de transformação”. E completou: “apoiamos veementemente este modelo econômico de valor acrescentado produzido em África, em benefício dos africanos.”
Investimento saudita e expropriação de terras no Chade
Fundada em 2010, o grupo Arise IIP, que desenvolveu a ideia das zonas econômicas e industriais a partir de parcerias público-privadas, já atua em 14 países de toda a África.
Em 11 de setembro deste ano, a investidora e desenvolvedora de infraestrutura do governo da Arábia Saudita, Vision Invest, anunciou o investimento de US$ 700 milhões na Arise IIP para expandir estes modelos de parques industriais por todo o continente.
O apoio saudita é uma das maiores captações de capital privado em infraestrutura na África. Hoje já há Zonas Econômicas Especiais como a do Benin, no Gabão e no Togo.
Em matéria publicada em 4 de abril de 2023, o jornal L’Humanité denuncia, a partir de relatos de camponeses e lideranças sindicais do Chade, a atuação da Arise IIP no país como uma “outra forma de colonialismo”.
A reportagem descreve que a Arise IIP foi criada como uma subsidiária da gigante singapurana do agronegócio Olam, no protagonismo de seu ex-diretor-geral, o indiano Gagan Gupta, que foi enviado pela Olam ao Gabão em 2008.
Em fevereiro de 2022, a Olam vendeu suas ações da Arise por US$ 189 milhões para a África Transformation and Industrialisation Fund (AtifF), um fundo de investimento com sede em Abu Dhabi e fundado em 2021 pelo próprio Gupta.
Foi o indiano que assinou, em 5 de novembro de 2022, um acordo com o Estado do Chade, no valor colossal de 763 milhões de euros, para criar a empresa Laham Tchad, na região de Moundou, a 400 quilômetros ao sul de N’Djamena, capital do país.
Mas os relatos da população chadiana reunidos na investigação apontam uma apropriação deliberada de terras camponesas, um “conjunto de indícios de corrupção” e “subornos às autoridades administrativas”.

Gagan Gupta assina acordo com presidência do Chade em nome da Ariss IIP
Presidência do Chade
“Muitos veem neste caso um escândalo emblemático da predação capitalista no continente africano, no qual se misturam camponeses espoliados, cidadãos em luta, ministros interessados, CEOs todo-poderosos, personalidades francesas e até mesmo… um bispo incorruptível”, diz trecho da reportagem.
Um dos trabalhadores do parque industrial no Benin alerta para as contradições deste modelo colocado pela Arise IIP em parceria com os chefes de estados africanos.
“Não trabalhamos para o Benin. Trabalhamos para os brancos. Eles têm dinheiro, podem investir em nós para mudar a nossa condição, para que também nós possamos usufruir dessa industrialização. Eles estão lá para lucrar. E pelo menos poderiam nos dar de comer, para que também possamos dar de comer às nossas famílias. É isso que pedimos”, finaliza o trabalhador.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou os responsáveis pela Zona Industrial Glo-Djigbe e mandou questionamentos também ao Governo do Benin e a Arise IIP. Até o fechamento da reportagem não houve retorno. O espaço segue aberto à manifestação.























