Revanche feminina é a força motriz de ‘A Substância’
Filme de horror corporal da diretora francesa Coralie Fargeat percorre a história da arte para criticar Hollywood e a indústria canibal de procedimentos estéticos
Quando certa manhã Elisabeth Sparkle acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama transformada numa gigantesca barata. Não foi exatamente assim que aconteceu, mas de todo modo é curta a distância entre o livro A Metamorfose (1915), de Franz Kafka, e o filme A Substância (2024), co-produção estadunidense-britânica-francesa roteirizada e dirigida pela cineasta francesa Coralie Fargeat. Não é à toa que a boqueta em que a personagem vivida corajosamente por Demi Moore entra para buscar a droga-elixir da juventude permanente (a Substância) está ornamentada com um pôster proibindo a permanência de baratas no recinto. A Substância navega em oceano kafkiano, como já sugere o paralelo de títulos entre A Substância e A Metamorfose.
A estrutura burocrática que Elisabeth Sparkle tem de enfrentar reside não mais numa repartição pública de Kafka, mas no show biz hollywoodiano, onde ela foi estrela de prestígio (“sparkle”, além do sobrenome da personagem, é também o verbo brilhar) antes de se tornar tele-professora de ginástica, tal qual uma Jane Fonda (ou quem sabe uma Demi Moore) metamorfoseada não em borboleta, mas numa repugnante barata. Em busca da juventude perene, uma Elisabeth já desgastada pelos anos e pelo botox injeta-se a substância verde fosforescente que arrancará de dentro dela outro ser, Sue (Margaret Qualley), jovial, linda e sorridente como… um comercial de pasta de dente.
Se no espaço cênico do filme Elisabeth Sparkle completa 50 anos em busca da fonte da juventude e da beleza fast food, sua idealizadora, Coralie Fargeat, nasceu em 1976 (portanto se avizinha dos 50) e encara de modo totalmente diverso a dura realidade da passagem do tempo em sentido único. Na fábula imaginada pela cineasta, sem compromissos realistas, os dois seres precisam conviver alternadamente, a médica e a monstra, Dra. Frankenstein e sua criatura, cada uma hibernante enquanto a outra cai no mundo. Os abusos cometidos pela versão jovem e pretensamente melhorada tatuarão a pele cada dia mais flácida da matriz recém-demitida pelo também botocado Harvey (Dennis Quaid), um executivo televisivo asqueroso como uma barata comedora de camarões.
A dualidade entre Elisabeth e Sue é vivida no feminino como havia sido vivida, na esfera masculina e gay, pelo personagem-símbolo do romance O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde. Os excessos cometidos por Sue causarão o envelhecimento radical (e nada realista) de Elizabeth, levando espectadores a se perguntar quem resta por debaixo da casca de silicone, botox, harmonização facial e cirurgia plástica que reveste os corpos naturais da era das selfies e da inteligência artificial.
Apesar de constituir uma unidade indivisível (como ressalta várias vezes a voz masculina gélida, tenebrosa, que dita por telefone as regras de consumo da substância), a dupla Elisabeth-Sue passa a se alimentar do ódio mútuo e crescente. Num dos muitos esgares cômicos de A Substância, as duas passam a duelar pela casa luxuosa em que vivem, cada uma deixando bagunça maior para a outra reparar. A jovem se desgasta em noitadas de sexo, drogas e música eletrônica sintética, a veterana sublima a insatisfação sexual em orgias alimentares à base de frangos, perus assados e blues acústicos românticos de Etta James.

Cena de ‘A Substância’, de Coralie Fargeat.
(Foto: Divulgação)
Referências literárias à parte, o banquete de horror corporal servido por Coralie Fargeat se apoia principalmente no relicário cinematográfico do século XX (e do XXI), que vai muito além daqueles diretores citados por ela como referenciais, como John Carpenter (de Halloween, 1978, e A Coisa, 1982), David Lynch (O Homem-Elefante, 1980), David Cronenberg (A Mosca, 1986) e Paul Verhoeven (Robocop, 1987, ou Showgirls, 1995), entre outros. De partida, as aulas televisivas de ginástica de Elisabeth evocam a atmosfera disco-fitness de Xanadu (1980) e da canção “Physical” (1981), com a jovem Olivia Newton-John, ou dos Embalos de Sábado à Noite (1977) e de Perfeição (1985), com o jovem John Travolta. Quando Sue ocupa a vaga deixada por Elisabeth na TV, o imaginário salta para o pesadelo pop do infame Barbie (2023), de Greta Gerwig. É só o começo.
A referência mais constante é Stanley Kubrick, que reaparece de múltiplas maneiras em A Substância. A brancura ofuscante do interior da boqueta e do banheiro-casulo em que Elisabeth promove sua metamorfose remetem à assepsia crítica de Laranja Mecânica (1971) e, sobretudo, de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Quando Sue “nasce” de dentro da espinha dorsal de Elisabeth, um corredor virtual invade a tela e se comunica com a viagem alucinógena dos humanos e do computador HAL em 2001. Noutro registro, os longos corredores coloridos em perspectiva do cenário de A Substância são sobrinhos-netos (inclusive em termos de horror) do desvario kubrickiano em O Iluminado (1980). Mais explícita ainda, Fargeat insere numa cena crucial de A Substância a peça sinfônica nietszchiana “Also Sprach Zarathustra” (1896), de Richard Strauss, a mesma que movia macacos pré-históricos e astronautas pós-modernos em 2001. Se em Kubrick “Zarathustra” fazia forragem musical à explosão masculina rumo ao futuro, em Fargeat a música emoldura uma implosão feminina que desemboca em destruição e autodestruição.
Na cena da eclosão do casulo guardado dentro de outro casulo, Sue sai das entranhas de Elisabeth tal qual o oitavo passageiro da nave espacial de Alien (1979), de Ridley Scott. Efeito comparável faz a coxa de frango luxuriante que a certa altura se move debaixo da pele firme e elástica de Sue. O filme transborda e entra em êxtase mórbido conforme a carcaça corroída vai transformando Elisabeth em personagens fabulares hoje politicamente incorretas, como a Moura Torta ou a madrasta de Branca de Neve transformada em bruxa (mas também os protagonistas de inúmeros filmes de vampiros), o filme enlouquece e entra em êxtase mórbido.
Ao final do processo brutal de envelhecimento que estiliza as velhinhas do Cocoon (1985) de Ron Howard, a(s) protagonista(s) se transforma(m) no Monstro Elisasue, uma garatuja que Fargeat definiu como “um Picasso de expectativas masculinas”. Mais que a materialização de Picasso, o resultado da fusão caótica das identidades de Elisabeth e Sue é também um festim cinematográfico, que evoca desde o melancólico O Homem-Elefante de Lynch até o idílico E.T, – O Extraterrestre (1982) de Steven Spielberg. O desfecho catártico do Monstro Elisasue é a volta reversa da Carrie, a Estranha (1976) de Brian de Palma: o sangue de porco que humilhava a colegial Carrie em seu baile de debutante (o nome atual é bullying) é expelido de volta para a plateia por Fargeat, na substância de 21 mil litros de sangue cenográfico. Temos aqui um banho de sangue talvez comparável à ultra-violência popificada dos filmes de Quentin Tarantino – mas sem disparar um tiro sequer. O bombardeio desta vez vem de dentro para fora.
A liquidificação de um espectro tão amplo de referências pode levar à conclusão de que A Substância é um típico pastiche hollywoodiano, mas seria enganoso classificar assim o segundo longa-metragem de Coralie Fargeat. A implosiva epopeia capitalista de Elisabeth Sparkle não se resume a um amontoado de citações aleatórias porque há uma unidade milimetricamente pensada entre todos os filmes, livros, obras de arte etc., parodiados pela diretora. Na maioria deles, tratam-se de expressões do esmagamento e da coisificação do indivíduo na convivência opressiva e opressora com a coletividade. O que Fargeat reverte em parte é a vitimização de heróis e anti-heróis individuais como Carrie, o Homem-Elefante, o Alex de Laranja Mecânica, o HAL de 2001, a subtenente Ripley de Alien e assim por diante. A cada botox, lipoaspiração, preenchimento labial, harmonização facial, colocação de lentes dentárias e injeção d’A Substância, Elizabeth, Sue e Monstro Elisasue são vítimas, mas também cúmplices ativas da opressão (hipercapitalista) que a coletividade lhes impinge.
Um detalhe a mais na substância compacta que constitui A Substância é a diferença primordial entre o filme de Coralie Fargeat e todas as outras obras citadas (entre tantas possíveis), com a única, solitária e não muito feliz exceção da Barbie de Greta Gerwig. Além dos livros e dos quadros, os filmes que A Substância parodia são sempre obras masculinas, dirigidas pelos mesmos homens que estiveram no poder desde que Hollywood é Hollywood. É um filme feminino, num tempo de filmes femininos. É projetado para falar de e para mulheres, não mais como objetos de uso e abuso masculino (não é coincidência o fato dos personagens masculinos dos filmes de Fargeat serem invariavelmente repugnantes).
A Substância trata de uma obviedade, o vazio e a falta de substância por debaixo das cascas de procedimentos estéticos e musculações (Elisabeth poderia ser um homem, gay ou heterossexual) da humanidade atual. Mas, mais que isso, a cineasta francesa promove um ajuste de contas feminino contra a governança secular da masculinidade destrutiva (seu primeiro longa, de 2017, chama-se Vingança e trata justamente disso). Não à toa nem por acaso, Coralie Fargeat faz tudo ao contrário do que fariam os varões da indústria cinematográfica estadunidense (ou de qualquer indústria). Sua matéria-prima é óvulo, não espermatozóide, e resulta numa obra de arte (ainda industrial e bem-sucedida comercialmente), perfeitamente alegorizada na disformidade (de rosto na nuca, pelancas e múltiplos olhos e bocas) do Monstro Elisasue. O monstro somos nós, vítimas e algozes de nós mesmos.
(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)























