Poesia e luta em 'Escolher falar de amor não cessará nenhuma bomba'
Em livro de Daisy Serena, as influências de bell hooks se mesclam com a rebeldia do jazz, do candomblé, e do sentido de ser negro no Brasil
“Alguns veem nossa escura raça com olhos de horror.”
— Phillis Wheatley Peters, século XVIII.
É simbólico que o multiartista, educador, pesquisador e Doutor em História Salloma Salomão abra o prefácio de Escolher falar de amor não cessará nenhuma bomba, de Daisy Serena, com essa citação de Phillis Peters. Nascida em 1753, na região conhecida como Senegâmbia, entre o rio Senegal e rio Gâmbia, Phillis foi vendida como escrava para a América do Norte aos oito anos de idade, e se tornaria a primeira poetisa afro-americana publicada. Phillis, como tantos outros negros e negras, foi submetida a um duro choque: como poderia, na visão dos nobres iluministas, uma negra escrever tão bem? Esse imbróglio entre o racismo biológico e a realidade concreta de pessoas que se tornaram negras após a travessia maldita em um navio – tanto as suas como de seus antepassados – permeou toda uma visão distorcida sobre as obras de negros e negras pelo mundo, que afetou gente como Machado de Assis, Frederick Douglass, Luiz Gama, Carolina Maria de Jesus e tantos outros grandes nomes da literatura.

A poetisa Daisy Serena, autora de “Escolher falar de amor não cessará nenhuma bomba”.
(Foto: Sergio Silva / Divulgação)
Nesse imenso Atlântico Negro, muitas foram as formas de se fazer luta, amor e arte. No Brasil, o samba e o candomblé tomaram corpo a partir de sucessivas batalhas. Nos Estados Unidos, o Free Jazz foi um ponto de virada na música que é bisneta do Spirituals e dos Work Songs – músicas originadas do encontro macabro entre a escravidão africana e o Novo Mundo –, e que teve relação direta com o Movimento dos Direitos Civis. São todos esses elementos que constituem o novo livro de Daisy Serena, uma das grandes fotógrafas da atualidade, poeta e escritora.
O título do livro pode soar pessimista, mas as influências de bell hooks se mesclam com a rebeldia do jazz, do candomblé, e do sentido de ser negro no Brasil, se tornando tanto o fogo que incendeia a revolta negra quanto a água que cessa, ao menos temporariamente, a chama do racismo visceral no Brasil. Fruto de diversas determinações, como a maternidade solo, a experiência de ser uma mulher negra e filha adotiva no Brasil e o silêncio improvisado e demolidor do Free Jazz, Daisy traz em seus poemas o grito de revolta e denúncia, junto dos apelos por afetos, e uma transformação completa nas relações. Magistralmente, Daisy abre o livro com “Aqui onde vocês não esperam que tenha poesia”, porque se, historicamente, os corpos negros só serviam para cozinhar e cortar quantas canas de açucar fossem possíveis, não havia tempo – diriam os ideólogos da eugenia a palavra “capacidade” – para se fazer arte, para ser poeta. Certa vez, o velho Marx afirmou que “como consequência do trabalho alienado, o homem se perde a si mesmo”, e é essa a tentativa de Daisy, como de nossos ancestrais citados ou não citados nesse texto: reencontrar a si mesmo, como sujeitos negros, livres; livres para poetizar, para pensar, para viver; ou, como afirmou a autora, “para que o feitiço se levante”.
O livro, que foi lançado no último 23 de agosto na Livraria Megafauna, em São Paulo, e conta com um álbum visual homônimo dirigido por Sérgio Silva, integra a poesia da autora e sua paixão pelo Jazz, num movimento comunitário, que agrega a poeta, compositora e cantora Tatiana Nascimento no posfácio e a curadora e artista Nathalia Grilo na orelha do livro, que ganha forma de comunidade, como feito pelos ancestrais que, longe de casa, precisaram construir um novo lar, espiritual e físico, para superar as mazelas da maior carnificina da modernidade, pois, enquanto o projeto colonial e a racialidade existir, a poesia de Phillis Wheatley Peters e Daisy Serena seguiram denunciando e reclamando um mundo novo.
Parafraseando Daisy:
“meu bem,
não me peça cantar a esperança do sol
se o trabalhador sob a mesma chama
distribui de pino a pino
muito mais que a sopa acumulada
em sua testa”.
Escolher falar de amor não cessará nenhuma bomba
Lançamento: 2025
Autora: Daisy Serena
Editora: selo doburro
(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas. Escreve e pesquisa o rap, o samba e outros temas da cultura popular brasileira.























