Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há algo constrangedor em assistir Demon Slayer. O anime sobre a guerra secreta entre uma ordem secreta de espadachins e demônios – misto de vampiros e onis japoneses que devoram seres humanos ou os transformam pela mordida – não peca pelo excesso, mas o busca acima de qualquer coisa: excesso de sangue, de diálogos e monólogos, de clichês, de humor pastelão. Melodrama filtrado repetidas vezes em busca de eficiência na geração de emoção, é na busca desavergonhada pelo excesso de sentimentalismo que está, contraditoriamente, sua força.

Nada disso é novidade aos que conhecem a série. O mangá começou a ser lançado em 2016 e foi concluído em 2020, enquanto o anime começou em 2019 e segue em andamento. É um dos maiores fenômenos da indústria cultural japonesa recente, rivalizando com gigantes como Dragon Ball e One Piece; o longa-metragem Demon Slayer: Trem Infinito, lançado no final de 2020 como continuação da primeira temporada, desbancou A viagem de Chihiro em bilheteria doméstica e tornou-se a maior bilheteria do mundo naquele ano, sendo pelos anos seguintes o filme japonês com maior bilheteria global. Sua posição só mudou em 2025, após o lançamento de Demon Slayer: Castelo Infinito, primeiro longa de uma trilogia que promete concluir a adaptação do mangá de Koyoharu Gotouge.

Cosplay do personagem Hotaru Haganezuka, da série "Demon Slayer", durante a Comic Con 2025. (Foto: Nathan Rupert / Flickr)

Cosplay do personagem Hotaru Haganezuka, da série “Demon Slayer”, durante a Comic Con 2025. (Foto: Nathan Rupert / Flickr)

Ambientada em um momento não especificado da era Taishō, período nas décadas de 1910-1920 no qual o Japão se consolidou como democracia liberal (e potência imperialista) aos moldes ocidentais e que precedeu o militarismo e o fascismo da era Showa, a série acompanha Kamado Tanjirō, um jovem camponês que tem sua família dizimada por demônios e sua irmã Nezuko, transformada em um deles. Buscando uma cura para Nezuko, Tanjirō se une aos caçadores de demônios em sua guerra contra Kibutsuji Muzan, o progenitor e comandante de todos os outros demônios.

Embora seja uma série shōnen – isto é, voltada para o público adolescente masculino –, sangrenta a ponto de às vezes flertar com o horror, a história destoa de seus contemporâneos pela gentileza e sensibilidade de seus personagens. Tanjirō, com sua empatia e seu cuidado físico e emocional para com amigos e inimigos, tem traços que poderiam ser considerados femininos pelo público tradicional do gênero. Isso, aliado à redução nos tropos sexistas e misóginos tão comuns ao shōnen, alimenta até hoje especulações de que a pessoa criadora da série, sob um pseudônimo para manter seu anonimato, seja uma mulher. Seu romantismo melodramático busca sempre clímax e catarse na conexão emocional entre personagens – mesmo vilões irredimíveis têm seu passado excessivamente trágico exposto conforme são decapitados, e os diálogos são explícitos, exagerados e emotivos, sem espaço para subtexto. 

Para além de características associadas à forma romance e tão cruciais para Demon Slayer, tais como o conflito entre bem e mal como forças transcendentais e a noção de uma historicidade salvífica, a série busca emular a própria condição definitiva para a figuração do romance: a coexistência hostil entre dois modos de produção distintos. Enquanto Tanjirō e os outros caçadores de demônios se vestem com roupas tradicionais japonesas, circulando em meio à natureza e construções de arquitetura tradicional em madeira, Muzan destoa de seus arredores desde sua primeira aparição, vestindo um terno branco e um chapéu fedora. Fosse publicada há duzentos anos na Europa, a história poderia ser considerada uma reação apaixonada e idealizante em defesa de valores feudais tradicionais contra a ruína trazida pela modernidade, opondo o individualismo e o canibalismo dos demônios modernos ao altruísmo comunitário dos guerreiros tradicionais.

O último filme escancara a contradição: o castelo infinito no qual habitam os demônios expande e colapsa o espaço, um construto em constante mutação que, embora evoque o estilo feudal japonês em seus detalhes, mais se assemelha a um prédio ou cidade contemporânea em seu conjunto – as visões panorâmicas do ambiente em transformação dão ares de ficção científica à história de fantasia.

Parece, no entanto, que o maior apelo da série está em outro lugar. Diferente das últimas ondas de shōnen populares, nos quais o triunfo contra o mal vem com a força de vontade e especialmente a astúcia para maquinar o melhor plano de combate contra o inimigo, Demon Slayer deixa a astúcia para os demônios, com regras complexas para seus poderes sobrenaturais: a vitória dos mocinhos é não somente o triunfo da vontade, mas a constante descoberta de novas formas de reconciliar corpo e mente. Menos a dominação da mente sobre a matéria e mais conexão mágica e pré-moderna entre esferas que hoje pensamos irreconciliáveis – das principais antinomias da modernidade.

Tanjirō, especialmente, costuma vencer por compreender e simpatizar com seu oponente enquanto descobre novas formas de diálogo entre seus músculos, sentidos e sentimentos. Contra Akaza, seu oponente em Castelo Infinito, o protagonista descobre como neutralizar seus impulsos combativos e simplesmente reagir aos estímulos e aberturas que o cercam. Uma vez derrotado, resta a Akaza reconciliar seu corpo transformado, propriedade de Muzan, com o sujeito que um dia foi, de modo a escapar do controle de seu mestre e conquistar a redenção. Promessas românticas de um corpo transfigurado para tempos pandêmicos, com os que vendem sua força de trabalho mais alienados que nunca de sua própria fisicalidade; é mesmo de se surpreender que Demon Slayer seja tão popular?

(*) André Kanasiro é Editor-chefe e idealizador da revista Zelota. Correspondente internacional da Spectrum Magazine. É biólogo e mestre em Letras estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo (USP).