Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Duas novas biografias ajudam a situar o papel do núcleo formado ao redor do bloco carnavalesco Cacique de Ramos e a chamada geração fundo de quintal na história do samba e da música popular brasileira. Em 465 páginas, o livro O Sambista Perfeito (Editora Malê), do jornalista e produtor musical Marcos Salles, acompanha a trajetória de Arlindo Cruz desde o nascimento até poucos meses antes de sua morte aos 66 anos, no último dia 8 de agosto. Uma Vida pelo Samba (Sonora Editora), do jornalista Rodrigo Faour, esmiúça em 440 páginas a importância musical e política de Beth Carvalho, a grande responsável por catapultar para o sucesso de massa um conglomerado de artistas que modificou a constituição do samba a partir dos subúrbios cariocas desde 1977, quando Beth os descobriu. 

Entre os artistas que gravitaram em torno de Beth Carvalho e do Cacique de Ramos, podem-se citar Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz & Sombrinha (em dupla e em carreiras individuais), Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra e Luiz Carlos da Vila, entre vários. O ponto de partida foi a convocação de Beth para que os bambas das rodas de partido alto das quartas-feiras na quadra do Cacique gravassem com ela o LP De Pé no Chão (1978) e a maioria dos álbuns que ela lançou dali em diante. Beth foi a responsável por celebrizar sambas compostos por essa patota, como “Vou Festejar” (1978), “Coisinha do Pai” (1979), “Camarão que Dorme a Onda Leva” (em duo com o então iniciante Zeca Pagodinho), “Caciqueando” (1983), etc. Se por um lado esse vínculo consolidou Beth como “cantora do povão”, o estímulo dado por ela aos criadores do Cacique de Ramos culminou na fundação do Grupo Fundo de Quintal, pelo qual passaram Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Sombrinha, entre vários. 

Arlindo Cruz na Virada Cultural em São Paulo, SP em abril de 2008. <br> (Foto: Silvio Tanaka / As fotos da Virada!)

Arlindo Cruz na Virada Cultural em São Paulo, SP em abril de 2008.
(Foto: Silvio Tanaka / As fotos da Virada!)

A primeira constatação provocada pela leitura dos dois trabalhos é de que a vida tem sido especialmente cruel para aquela geração musical desde 2017, quando Arlindo Cruz sofreu um AVC hemorrágico hipertensivo e passou a viver encapsulado em si próprio até sucumbir, há um mês. A “madrinha” musical Beth Carvalho morreu em 2019, aos 72 anos, também após longa enfermidade. Estes anos viram ainda o desaparecimento de Almir Guineto (em 2017, aos 70), Acyr Marques (irmão e parceiro de Arlindo Cruz, em 2019, aos 65), o “príncipe do pagode” Reinaldo (discípulo e difusor da obra de Arlindo, em 2019, aos 65), Ubirany (um dos fundadores do Grupo Fundo de Quintal, morto de Covid-19 em 2020, aos 80), o maestro Ivan Paulo (arranjador de uma infinidade de discos dessa vertente, em 2024, aos 80) e Bira Presidente (irmão de Ubirany e também fundador do Fundo de Quintal, em junho deste ano, aos 88). Jovelina Pérola Negra, a única mulher partideira e compositora que conseguiu se estabelecer num agrupamento dominado e governado pelos homens, sucumbiu em 1998, aos 54 anos.

Entre os feitos dessa turma, celebra-se a introdução de instrumentos que o samba até então desconhecia, como o banjo (até então frequente na música country estadunidense), sugerido a Almir Guineto pelo sambista e humorista Mussum, então no grupo Os Originais do Samba, um antecipador da geração fundo de quintal. Após a saída de Almir, o banjo foi encampado por Arlindo em sua passagem pelo Fundo de Quintal, entre 1981 e 1991. Ubirany inventou o repique de mão, outro instrumento característico do som do grupo, e Sereno, outro co-fundador do Fundo de Quintal, desenvolveu o tantã. O livro anterior de Marcos Salles, Fundo de Quintal – O Som que Mudou a História do Samba, uma Biografia (Malê, 2022), destrincha a história do grupo e os processos de invenção de banjos, repiques e da “Batucada dos Nossos Tantãs” (título de um dos maiores sucessos do grupo, de 1993). Nesse livro, Sereno afirma que  “sequestrou” a tambora de grupos de bolero como Trio Los Panchos para batizar o tantã e levá-lo aos braços do samba. 

Além de Beth Carvalho, Leci Brandão também foi importante em propulsionar os novos modos do samba, ao compor, gravar e estourar “Isso É Fundo de Quintal”, em seu LP de 1985: “O que é isso, meu amor?, venha me dizer/ isso é fundo de quintal/ é pagode pra valer”. Outros intérpretes já consolidados aderiram às composições da nova geração, casos de Elza Soares (que gravou Jorge Aragão antes da descoberta de Beth), Alcione (desde 1982), Mussum, Dona Ivone Lara e Roberto Ribeiro.

Cacique de Ramos na árvore genealógica do samba

Talvez pela inclusão de tantos elementos novos, a geração fundo de quintal foi compreendida como de ruptura, pelo menos inicialmente. Isso se acentuou logo a seguir pelo boom de pagode provocado pelo advento do Fundo de Quintal, agora imerso na sonoridade de teclados e instrumentos elétricos, de grupos como Raça Negra, Art Popular, Molejo e Só pra Contrariar (batizado em tributo ao hit homônimo de Almir, Arlindo e Sombrinha, lançado em 1986 pelo Fundo de Quintal), entre inúmeros. 

As biografias de Beth e Arlindo, no entanto, ajudam a entender a forte integração dessa geração com a genealogia do samba. No livro sobre o Fundo de Quintal, o paulista Sombrinha divide os integrantes do grupo em escolas, classificando Bira e Ubirany na escola de Donga (1890-1974), o ex-integrante Neoci na escola de João da Baiana (1887-1974) e a si próprio na linhagem do choro em que vicejou Pixinguinha (1897-1973). Neoci (morto em 1981, aos 44 anos), exímio versador, era filho do inaugurador João da Baiana.

 Leia também – 78 anos de Almir Guineto, rei e herói do pagode popular 

As interconexões são mais profundas. Bira Presidente conta que ganhou seu primeiro pandeiro aos 7 anos, das mãos de Gastão Viana e Honório Guarda, chorões da geração de Pixinguinha, e que quando criança assistia às rodas de partido alto, pernada e miudinho protagonizadas por Donga, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres e outros iniciadores do samba. Referência máxima para Arlindo Cruz foi o partideiro Candeia (autor de sambas antológicos como “O Mar Serenou”, lançado por Clara Nunes em 1975), com quem tocou atabaque e gravou cavaquinho no LP Samba de Roda (1975). Seu pai, Arlindão, lançou um disco em 1966 como integrante do grupo Mensageiros do Samba da Portela, liderado por Candeia. Policial civil, Arlindo pai foi preso em 1971 como integrante do famigerado Esquadrão da Morte e permaneceu na prisão por 19 anos. 

De família essencialmente musical, Arlindo filho cresceu na órbita da Portela e nos 1980 se converteu em integrante leal do Império Serrano, para o qual ajudou a compor (por vezes incógnito) uma série de sambas-enredos. Antes de ceder ao chamado da música, Arlindo ingressou na escola de pilotos da Força Aérea Brasileira e cursou as faculdades de Economia e Letras, mas não concluiu nenhuma das duas.

No campo dos entrecruzamentos musicais e culturais, Jorge Aragão foi formado no circuito dos bailes black (um de seus ídolos era George Benson). Arlindo Cruz assistiu ao Jackson Five do pequeno Michael Jackson no Maracanãzinho, aos doze anos, e adotou cabelo black power antes de se tornar profissional do samba. O violonista Cleber Augusto (que entrou para o Fundo de Quintal em 1983) cita como referências cruciais o afrossambista de bossa Baden Powell e o emepebista João Bosco – e começou carreira tocando guitarra com a dupla de jovem guarda Leno e Lilian. 

É curioso o arco que vem aproximar a geração fundo de quintal e a “madrinha” Beth Carvalho, moça de classe média branca que cursou Psicologia (sem terminar) e se iniciou na música afinada com a bossa nova e com a era dos festivais da canção. No Festival Internacional da Canção de 1968, Beth defendeu a toada ultra-romântica “Andança”, que terminou em terceiro lugar, atrás das engajadas “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, e “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque. 

Funcionário público no Ministério da Fazenda e simpatizante da esquerda, o pai de Beth foi demitido no pós-1954 e ficou sem emprego. “Fui educada sem luxos e sem preconceitos. Não sei o que é fome, mas sei o que é dar duro desde que meu pai foi cassado”, afirma a cantora em Uma Vida pelo Samba, num depoimento de 1979. 

O desvio rumo ao samba “de raiz” começou no início dos anos 1970, sob influência de Nelson Cavaquinho e Cartola, em sintonia fina com a Mangueira e em proximidade com os sambistas de Vila Isabel, liderados por Martinho da Vila, até descobrir os novos bambas do Cacique de Ramos. O autor Rodrigo Faour relativiza a mitologia sobre o nascimento de Beth num dos berços populares do samba, a Gamboa – segundo ele, apenas a maternidade em que ela nasceu ficava naquele bairro. 

Faour documenta a rejeição da gravadora Odeon à guinada de Beth ao samba e cita como ponto de ruptura com a multinacional a pressão para que ela cantasse nas Olimpíadas do Exército. O início do progresso como sambista na linhagem de seu ídolo maior Nelson Cavaquinho se daria no selo independente nacional Tapecar. Já na multinacional RCA, o romantismo exacerbado e os temas frugais dos compositores do Cacique de Ramos não chegaram a atenuar o ativismo crítico e ideológico na música de Beth, lançadora de sambas sociais de sucesso como “Salário Mínimo” (1976), “Saco de Feijão” (1977), “Corda no Pescoço” (1986), etc. Beth professou ideais progressistas até a morte, participando ativamente da política nacional, da campanha pelas “Diretas Já” até o ativismo contra o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, nos últimos anos de vida. 

Samba e sofrimento para Beth e Arlindo

Outro traço compartilhado por Beth e Arlindo acabou sendo a morte dolorosa após anos de declínio físico e sofrimento, em processos esquadrinhados em detalhes ultra-realistas pelos respectivos biógrafos. Com a esposa e os filhos de Arlindo na retaguarda, Marcos Salles vai fundo em O Sambista Perfeito, abordando a dependência de cocaína (“tem horas que não aguento a verdade do mundo que tenho de encarar”, diz Arlindo), a obesidade em família e os problemas financeiros e divergências políticas com o prefeito Eduardo Paes por conta do festival Samba in Rio. Menciona sem muita ênfase episódios de agressão à esposa Babi Cruz (“eu sabia que ele tinha batido na minha mãe e não tava certo”, diz a filha Flora) e deságua nas “cenas de filme de terror” durante as inúmeras internações entre 2017 e 2025.

A família rebate críticas direcionadas à exposição pública do estado de saúde de Arlindo, inclusive com a presença em situação vegetativa no desfile do Império Serrano em sua homenagem, em 2023. “Não adianta tampar o sol com a peneira, até porque a gente nunca teve vergonha dessa situação”, defende-se a esposa Babi. “É a realidade da nossa vida e da vida dele. Nem por isso deixa de sentir prazer”, protesta o filho Almirzinho, também cantor, diante da presença de Almir no desfile do Império. “Querem que eu fique com meu pai dentro de casa, depressivo, triste? Aí é pior, vou estar maltratando ele”, argumenta. As lições de realidade explícita chegam às tentativas de vilanização de Babi por iniciar relação amorosa com outro homem durante a doença do marido. “Eu sou mau caráter? Não. E também não sou piranha”, ela se defende. “Tem gente que não espera cinco horas pra transar, cinco dias, cinco meses. Eu já passei de cinco anos.”

No caso de Beth, os problemas de coluna começaram por volta de 2006, e em 2009 ela foi operada pela primeira de várias vezes, chegando a passar 13 meses internada. Em cadeira de rodas motorizada (que batizou de “bethmóvel”), passou a se apresentar sentada e protagonizou cenas dramáticas cantando deitada nas derradeiras apresentações ao vivo. “Andei pensando em fazer Na Cama com Beth Carvalho”, gracejou, evocando a estrela pop Madonna. 

Na parte final de Uma Vida pelo Samba, a também cantora Luana Carvalho revela detalhes agudos sobre as provações enfrentadas pela mãe, e aproveita para refletir criticamente sobre a teimosia de Beth em se expor tão fragilizada ao público: “Essa sandice de querer que a Beth fosse eterna era, para mim, um delírio coletivo regido por ela”. Luana torna públicos fatos escondidos pela mãe, de que os problemas sucessivos de saúde começaram antes e se prolongaram por 18 anos e de que nesse intervalo Beth enfrentou um tumor ósseo no sacro e um câncer de mama.

A filha avalia também os caminhos artísticos de Beth Carvalho: “Saiu de uma bossa nova, que era muito mais suave no discurso, passou pela toada e chegou no samba de quadra, no partido-alto. Fez um caminho que precisava, digamos, de um embrutecimento (…), ela teve até que embrutecer um pouco a voz”. E Luana chega ao xis da questão: “Para chegar aonde chegou, ela teve que brigar demais e se abrigar demais, se munir de uma certa dureza mesmo, para ter moral dentro de um universo só de homens, extremamente machista”. 

A cantora e compositora Teresa Cristina afirma no livro que Beth Carvalho quis ser enterrada munida de seu título de eleitor, uma resposta simbólica contundente aos tempos golpistas que testemunhou nos anos finais. Teresa reproduz também o conselho que ouviu da antecessora: “Eu tô indo, mas vocês estão aí. Você têm que trazer os sambistas para a política. A gente tem que falar de política e tocar o dedo na ferida. O sambista não pode ser omisso”.

Associada à tradição mais pétrea pela filiação a Cartola e Nelson Cavaquinho, Beth provou que as coisas não eram bem assim ao romper com a tradição e fazer suas as letras e melodias do Cacique de Ramos. Mulher pioneira (como Dona Ivone Lara) em subir ao palco empunhando um cavaquinho, em diversos momentos não hesitou em aplicar bateria, baixo, teclados e recursos eletrônicos ao samba. Sem preconceitos contra a vertente axé, se fez acompanhar pelas guitarras baianas de Armandinho Macêdo e Luiz Caldas. Por cima de tudo, remou contra a maré ao classificar reiteradamente o samba como parte constituinte da música popular brasileira, e não uma entidade marginal inferiorizada pelas elites MPB. Esse era um pedaço importante da realidade nua e crua do samba e do pagode, que nem todo mundo gostava (e gosta) de reconhecer. “Preconceito? Racismo? Puro folclore? Eram perguntas sem respostas”, demarca Marcos Salles em seu livro, mostrando que as perguntas continuam aguardando respostas.

(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)