Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O roteirista do Brasil colocou o cineasta Kleber Mendonça Filho e grande parte do elenco de O Agente Secreto em uma coletiva sobre o filme justamente no dia 28 de outubro, horas depois da chacina realizada pela Polícia do Rio de Janeiro no Morro da Penha e no Complexo do Alemão.

Para além de uma curiosidade que ficou restrita aos jornalistas, está o fato de o filme estrear no circuito nacional nesta quinta-feira (06/11) com o tema da segurança pública em evidência no noticiário e provocando a inevitável analogia com os rompantes de autoritarismo tão bem retratados na obra vencedora de dois prêmios no Festival de Cannes.

O uso da violência como instrumento de controle social por parte do Estado é parte desse Brasil de 1977 presente em O Agente Secreto. Talvez, o plano do seu diretor tenha sido mostrar como essa violência sempre esteve intrinsecamente presente no Brasil, quiçá em toda a sua história, e, evidentemente, também neste 2025, quando se dá a estreia deste filme de época tão atual.

(ATENÇÃO: a partir deste parágrafo, a análise do filme contém spoilers)

Em outros momentos, a película vai além e evidencia a banalização da morte, também típica das ditaduras, que às vezes mora nos detalhes, como na longa e tensa cena do posto de gasolina que inicia a trama, às vezes nos realces, como no momento em que delegado de polícia incita o protagonista interpretado por Wagner Moura a celebrar junto com ele o número recorde de óbitos registrados durante o carnaval.

As mortes e mutilações causadas pelas mordidas de tubarões, fenômeno relativamente comum das praias do Recife, são cuidadosamente usadas pelo diretor para incrementar essa trama de violências sutis com um elemento ainda mais escancarado, que ajuda a fazer o filme transitar entre distintos gêneros, ora parecendo uma comédia, ora parecendo uma história de terror.

Os segredos do agente

O personagem de Wagner Moura é o fio condutor que transporta o espectador a um universo no qual os agentes que sustentam um regime autoritário aproveitam para impor seus pequenos poderes e se tornam ameaças constantes.

O Brasil tem uma quantidade significativa de filmes sobre a ditadura (embora menos do que deveria, se comparado com a produção de países como Argentina e Chile) e a maioria deles são contados através de personagens reais que enfrentaram os abusos e a tirania desde uma perspectiva próxima aos centros de poder, como a Eunice Paiva de Ainda Estou Aqui, ou aos grupos que se organizaram para lutar abertamente contra o regime, como os guerrilheiros de O que é Isso, Companheiro?.

Já o enigmático personagem de Wagner Moura nos permite entender como aquela tirania afetava as pessoas comuns, como elas lidam com a perseguição e o medo, transformando o secretismo em método de sobrevivência, a fuga em necessidade, ou “a mentira em mecanismo para salvar a vida de companheiros”, como bem disse em algum momento uma ex-presidenta que sentiu na pele a violência do terrorismo de Estado.

Cena do filme ‘O Agente Secreto’, de Kleber Mendonça Filho
Victor Jucá / Divulgação

Nesse sentido, as cenas do gato com duas cabeças em um albergue de refugiados servem tanto para instalar outro leve elemento de terror quanto para trazer uma metáfora sobre aquelas pessoas obrigadas a equilibrar suas vidas duplas.

Ingredientes adicionais

Além dos problemas típicos da ditadura, e como em todo filme de Kleber Mendonça Filho, O Agente Secreto traz à tona problemas que existem no Brasil desde sempre, mas que não costumam ser explorados pelas produções sudestinas.

Desta vez, surgem em destaque duas dessas questões, e uma delas é a xenofobia que muitos brasileiros do sul sentem contra as populações do norte, que é devidamente tratada em uma cena em que Alice Carvalho consegue ser brilhante com os cerca de três minutos de tela que tem em todo o filme – mais um trabalho que a posiciona como uma das melhores atrizes brasileiras da atualidade.

A outra problemática visível é o desprezo pelas entidades públicas que produzem conhecimento, fazendo muito mais fácil a apropriação desse conhecimento por interesses privados.

Tudo isso temperado com uma trilha sonora primorosa, uma perna cabeluda e a apaixonante Dona Sebastiana (interpretada pela também apaixonante Tânia Maria) resultam no que é provavelmente o melhor filme de Kleber Mendonça Filho até este momento de sua carreira.

Como comentário final, vale acrescentar que O Agente Secreto tem outro elemento delicioso em sua receita, que são as pitadas de Retratos Fantasmas, o documentário de Kleber Mendonça Filho sobre os antigos cinemas de rua do Recife, lançado em 2023.

Revi o documentário no dia seguinte, horas depois de ver o filme e recomendo a experiência, mesmo que seja fazendo o inverso (ver o documentário primeiro, depois o filme).