Sábado, 6 de dezembro de 2025
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As Organizações Globo se auto-homenageiam no livro Som Livre – Uma Biografia do Ouvido Brasileiro, lançado pela Globo Livros e assinado pelo jornalista carioca Hugo Sukman. Trata-se de um levantamento histórico sobre a gravadora de discos que a Globo manteve entre 1969, quando foi decidida sua fundação, e 2021, quando afinal a Som Livre foi vendida para a multinacional Sony Music por R$ 1,43 bilhão. Em 240 páginas, Sukman dá dimensão da centralidade (nem sempre reconhecida) da música popular dentro do imaginário da Rede Globo. A trajetória de ascensão, longa permanência no topo e queda livre da Som Livre, por sua vez, espelha a derrocada das gravadoras tradicionais no século XXI, na ressaca da evolução dos formatos virtuais e das hoje hegemônicas plataformas de streaming. 

A “biografia do ouvido brasileiro” reprisa ou revela detalhes saborosos de mais de meio século de história, muitos deles desconhecidos da maioria silenciosa que ouve (ou ouvia) música o dia inteiro diante da tela da TV. Conta, por exemplo, que a ideia de criar uma gravadora para veicular as trilhas sonoras das então ascendentes novelas da Globo partiu do produtor musical João Araújo, executivo de gravadoras desde 1954 e futuro pai do roqueiro Cazuza. A sociedade foi criada, segundo Sukman, com a divisão de 51% para o todo-poderoso Roberto Marinho e 49% divididos entre os diretores globais Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (o Boni) e o advogado Otávio Castro Neves (João Araújo seria nomeado presidente, mediante salário, segundo depoimento de sua viúva, Lucinha Araújo). A partir desse núcleo original desenvolveu-se uma estrutura que por cinco décadas ditaria gostos e modas e gozaria de amplo domínio sobre a totalidade da indústria fonográfica brasileira. “Boni não gostava de samba nas trilhas sonoras”, escreve Sukman a certa altura, revelando um bocado sobre a formação do gosto médio emepebista do público brasileiro a partir dos anos 1970.

Nas primeiras novelas, sem poder contar com o elenco de artistas das outras gravadoras, a Globo modelou as trilhas sonoras contratando sob encomenda duplas de compositores (Antonio Carlos & Jocafi, Vinicius de Moraes & Toquinho, Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, Raul Seixas e Paulo Coelho, Baden Powell e Paulo César Pinheiro) e tentando inventar um elenco próprio de cantores, que somava nomes obscuros (Djalma Dias, Betinho, Jorge Nery, o chinês Jacks Wu) e um ou outro futuro talento da MPB (caso de Djavan, o mais importante compositor saído dos laboratórios da Som Livre). Criou-se ainda um setor de trilhas internacionais, beneficiado pelo acordo da Globo com o pequeno selo Top Tape, que no início dos anos 1970 detinha os direitos de lançamento, no Brasil, dos discos da Motown, meca do pop negro norte-americano e detentora de nomes como Stevie Wonder, Marvin Gaye, Diana Ross e o menino Michael Jackson.

Logo de cara, a Som Livre emplacou o sucesso estrondoso do samba joia “Você Abusou” (1970), dos baianos Antonio Carlos & Jocafi, na trilha da novela Minha Doce Namorada (1970). Os resultados começaram a acender o alerta para as gravadoras multinacionais sobre o concorrente de peso que se erguia, mas em pouco tempo a Globo entraria em acordo com as concorrentes e passaria a utilizar seus fonogramas nacionais e estrangeiros, fazendo da Som Livre uma vitrine de gala para o lançamento dos sucessos que o Brasil ia consumir em massa a cada nova novela. Os termos dessa parceria, digamos, público-privada nunca foram muito transparentes – e não aconteceram sem atritos, como insinua Sukman, sem entrar em minúcias.

A Som Livre não demorou, tampouco, em apostar na produção de material original fora dos cercados das novelas, de que o primeiro marco deve ser o álbum Acabou Chorare (1972), dos Novos Baianos, até hoje considerado um dos maiores da história da MPB. Nos primeiros anos, a ainda não hegemônica gravadora voava solta e conseguiu investir em discos de nomes do underground da música nacional, como Alceu Valença, Edy Star, Sidney Miller, Tuca, Djavan, Jards Macalé, Geraldo Azevedo, Sonia Santos, Ruy Maurity e o futuro astro pop Guilherme Arantes, entre vários. 

A vocação pop se acelerou e se avolumou quando chegaram ao elenco exclusivo da Som Livre a roqueira Rita Lee, em 1975, e o samba-roqueiro Jorge Ben (hoje Ben Jor), em 1978. No ano de chegada de Rita, a gravadora da Globo detinha nada menos que 56% do mercado fonográfico brasileiro, segundo evoca Sukman. Foi quando a novela Gabriela, inspirada na obra de Jorge Amado, personificou uma fase de transição, com composições originais interpretadas não mais por artistas desconhecidos, mas por astros como Gal Costa, Maria Bethânia, Moraes Moreira, João Bosco e Fafá de Belém, todos “gentilmente cedidos” à Globo pelas multinacionais ávidas por vender mais e mais discos. 

Nas asas da disco music que vicejava na segunda metade dos 1970, os estúdios da Som Livre fizeram das Frenéticas as divas efêmeras dos Dancin’ Days (1978) e serviram de forno também para forjar a sonoridade do pop emepebístico dos anos 1980 (antes do novo levante roqueiro nacional), nas figuras dos arranjadores Lincoln Olivetti e Robson Jorge, cuja ópera de sintetizadores ajudaria a desbancar a rica parafernália de orquestras exclusivas da Globo, até então comandadas por maestros como Chiquinho de Moraes, Waltel Branco, Arthur Verocai e Dori Caymmi. A próxima reviravolta se armava já em 1982, e João Araújo bancou a estreia do grupo de rock Barão Vermelho, liderado por seu filho Cazuza. Já na segunda metade dos 1980 a Globo transforma em fenômeno de massa (inclusive musical) a gaúcha Xuxa, uma autêntica babá eletrônica de discurso inconsistente e apelo infanto-sexual.

“Ao longo de toda a sua direção na Som Livre, ele foi incisivamente contrário ao jabá”, afirma Sukman sobre João Araújo, dourando a pílula da máquina de promover e fabricar sucessos, nem sempre com prerrogativas e propósitos exclusivamente artísticos. As inúmeras modalidades de jabaculê se fecham em outro baú, evidentemente não revolvido pelo livro. Entre produtores do chamado “padrão (sonoro) de qualidade” da Globo, como Guto Graça Mello, Lincoln Olivetti e Max Pierre, a explosão da trilha sonora de Roque Santeiro (1986) precipitou a ascensão do produtor Mariozinho Rocha, ex-integrante de um conjunto de protesto dos anos 1960 (o Grupo Manifesto), a mandachuva das trilhas, que durante 30 anos escolheria com poderes absolutos quem entrava e quem ficava de fora das novelas do plim-plim. 

A parte mais reveladora do livro fica para o final, quando o autor faz malabarismos para não explicitar como derrotas as derrotas avassaladoras que levariam ao desmonte total da fábrica musical neste século. O advento de entidades como mp3, Napster e iTunes apanhou a Som Livre “já sem elenco próprio e forte de artistas”, como observa Sukman, demonstrando que a desarticulação não começou com a revolução digital. João Araújo perdeu o cargo principal em 2004 e foi sucedido por uma série de executivos de alcance curto, que dão depoimentos ao livro descrevendo como realidade gloriosa um cenário catastrófico. “No que coube à Som Livre, em 2004, grande parte da editora foi vendida para a multinacional Warner-Chappell”, revela Sukman, descrevendo o esquartejamento da fábrica de sucessos e açoitando o mito de que a Som Livre fosse uma empresa de conteúdo nacional, nacionalista, brasileiro por excelência. Com exceção dos primeiros e incertos anos, as gravadoras transnacionais sempre estiveram por trás da gravadora “nacional” da Globo.

As últimas duas décadas se desenrolam como um longo período de agonia, em que diretores genéricos são recrutados para preparar o encerramento do negócio, enquanto lançam um selo de fachada underground (chamado Slap) e tentam emplacar ídolos para uma nova era, entre eles Tiago Iorc, Maria Gadú, Silva e poucos mais. Ao mesmo tempo, a gravadora aposta tudo no filão principal da música brasileira de massa dos anos 2000, licenciando os álbuns (quase sempre ao vivo) da nova geração sertaneja, de Michel Teló, Fernando & Sorocaba, Luan Santana, Gusttavo Lima, Marília Mendonça etc., mas também de outros nichos hiper-populares, de Exaltasamba, Raça Negra, Wesley Safadão e o “talentoso padre-artista” (de acordo com Sukman) Fábio de Mello, entre muitos.

O desmanche é tratado com ares de naturalidade, como no seguinte trecho: “Ao se mudar em 2013 para sua quarta sede, localizada na Barra da Tijuca, a Som Livre até fechou seus históricos estúdios de Botafogo, justamente porque os artistas, graças à tecnologia, contam com seus próprios locais de gravação”. Com a explosão de artistas como Marília Mendonça, em 2019 “a brasileira Som Livre liderava o mercado de música produzida no país”, celebra Sukman, sem conseguir ou querer explicar por que, num cenário tão auspicioso, a Rede Globo optaria por se desfazer da galinha dos ovos de ouro que tanto alimentara a granja por 52 anos. Reproduzindo palavras oficiais, o autor escreve que a Sony Music estaria “comprando a líder de mercado em música brasileira”: “A Globo vendia uma empresa não apenas saudável e lucrativa, mas a líder de seu mercado”.

Hugo Sukman não deixa de notar que o desfecho dessa história coincide no tempo com as mortes de duas artistas-símbolo da Som Livre (e do Brasil), a jovem Marília Mendonça, em 2021, e a veterana Rita Lee, em 2023. No cenário que se constrói antes do final melancólico, é como se uma ascensão formidável tivesse levado a uma queda espetacular num passe de mágica, como se causas naturais tivessem levado da Globo uma mina de ouro que, parece, havia esgotado suas jazidas. Nas entrelinhas do próprio livro é possível ler que não foi bem assim que tudo aconteceu.

(*) Pedro Alexandre Sanches é editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)