Filmes de super-herói: é possível escapar do cinismo?
Enfrentando dificuldades para levar público ao cinema, filmes de super-herói tentam superar o cinismo apelando nostalgicamente a tempos mais ingênuos
O cinema de super-heróis sempre foi um espaço privilegiado para o pastiche e a nostalgia, colagem acrítica de remendos culturais de outras épocas cujas miragens devemos celebrar e desejar ao mesmo tempo – características formais do que Fredric Jameson descreveria como a lógica cultural do capitalismo tardio. Assim como Star Wars e sua relação com séries de ficção científica na TV estadunidense dos anos 1930, os filmes de super-heróis são objetos complexos na medida em que, “em certo primeiro nível, crianças e adolescentes podem aceitar as aventuras diretamente, enquanto o público adulto está em condições de satisfazer um desejo mais profundo e efetivamente nostálgico de retornar a esse período anterior e viver uma vez mais seus velhos e estranhos artefatos estéticos”.[1] Neste caso, histórias em quadrinhos sobre personagens superpoderosos e fantasiados que, desde os anos 1930, não param de fascinar o público nos EUA e além.
E o que tanto ofereciam essas histórias para que o cinema as retomasse compulsivamente? Para além das óbvias fantasias de poder masculinistas – há décadas apelando para homens que, alienados de seu próprio corpo vendido para a produção de riqueza alheia, devaneiam com a possibilidade de esmurrar seus problemas – há certa promessa, agora degradada, similar à do próprio romance enquanto forma. Seria a promessa burguesa de que o sujeito, em sua jornada pela vida, pode transformar a si mesmo e ao mundo, conectando-se com os seus e reconciliando-se com uma realidade que lhe é estranha. Promessa talvez boba, impossível de se cumprir plenamente no capitalismo; mas não deixa de ser atraente se imaginar poderoso, inconfundível e idiossincrático, capaz de resolver os problemas do mundo com as próprias mãos, sensação também reificada como mercadoria.

Imagem de “Quarteto Fantástico: primeiros passos”.
(Foto: Divulgação)
O Universo Cinemático da Marvel (MCU) bagunça a receita ao consolidar o cinismo como característica das histórias de super-herói. Com seus olhares irônicos e piadas autodepreciativas que censuram qualquer ilusão de grandiosidade, os filmes da Marvel têm há mais de uma década tentado negar compulsivamente a possibilidade de que seus filmes tenham outro valor que não o da mercadoria – marca registrada da indústria cultural, como já diziam Adorno e Horkheimer. Não deixa de ser notável como foi bem-sucedida a tentativa. Eliminado (na medida do possível) o sentido, mas não superado o super-herói enquanto subgênero, resta o reforço ao ritual enquanto forma e à ilusão de que “por aqui ninguém mais é bobo” para acreditar nessas infantilidades. Só nos resta pagar para ver bilionários, deuses e agentes secretos saírem na mão vez após outra para restaurar a ordem estabelecida, sempre bem assessorados pelo complexo industrial-militar dos EUA dentro e fora do mundo narrado. Sequer são capazes de sentir ou gerar tesão; sob a hegemonia absoluta do capital, não há espaço para tais excessos e irracionalidades, e seus corpos são meras máquinas de desempenho otimizado para punir os inimigos da ordem. Questão inclusive tematizada em Vingadores 2: A Era de Ultron, no qual o Homem de Ferro quase destrói o mundo em busca de uma desculpa para abandonar o emprego enquanto Hulk e a Viúva Negra sofrem por não verem possibilidade de futuro juntos para além do trabalho. Crítica preventiva às próprias contradições que não chega a lugar algum e, por isso mesmo, legitima o criticado. Resta a máxima: sobreviva a qualquer custo, trabalhe, e a sensação – esta talvez a mais importante – de que qualquer objetivo que não o da própria sobrevivência é uma farsa que nos punirá por não pressupor o egoísmo universal.
Mas este cinismo parece estar dando seus primeiros sinais de esgotamento. Não importa o quanto se tente, o mundo se recusa a aceitar que História e política acabaram após o fim da Guerra Fria, que agora só resta sobreviver, e agora sobe ao poder quem vende (ou finge vender) sonhos maiores que a mera manutenção da ordem. O mesmo parece ser verdadeiro para o cinema[2], e o MCU sofre com os efeitos disso: após o fim definitivo de Thanos, o vilão que moveu este universo ao longo de uma década – e o único personagem com sonhos maiores do que si mesmo, diga-se de passagem – a Marvel tem tido dificuldades para atrair seu público ao cinema (ou até ao streaming). Mais do que cansado de super-heróis, o público parece estar cansado de histórias que, como os trambiques do Vale do Silício, só têm valor em sua promessa de um futuro no qual o investimento de tanto tempo e dinheiro finalmente valerá à pena no sentido mais utilitário do termo: o consumo de um desfecho definitivo e reificado em nome do qual tudo que veio antes não passa de meio para um fim.
A Marvel tem tentado reagir ao revés. Com Quarteto Fantástico: primeiros passos, lançado em julho de 2025, consolida-se sua velha nova alternativa ao cinismo. Já ensaiada em filmes recentes como Pantera negra 2, Doutor estranho 2 e Thor 4, todos em alguma medida sobre heróis em crise existencial que encontram sentido na vida ao adotar filhos e sucessores, a promessa de sentido volta à família ideológica e idealizada. Quarteto fantástico é transparente: em seu retrofuturismo nostálgico por um passado domesticado – um modernismo que não fuma – o filme supõe que ansiamos por tempos em que bastavam comerciais de “família margarina” na TV de tubo para que nos déssemos por satisfeitos com o que nos é oferecido. O quarteto é mais do que nunca o epíteto da família margarina estadunidense, com um casal que engravida sem uma gota de tesão em tela, um homem-elástico cuja deformação corporal jamais é espetáculo e um cunhado mulherengo que só manifesta seus dotes em uma paixão platônica por uma entidade cósmica. Sinal de que a máxima dos tempos cínicos ainda não morreu, e de que ainda não há espaço para certos excessos.
De fato, o filme se esforça tanto para criar um conflito entre a integridade da família nuclear e escusos interesses coletivos que não faltam conservadores reivindicando o filme como “pró-vida”. Frente à chegada de um deus que pretende devorar o planeta Terra (numa deglutição etérea e mediada pela tecnologia, claro, sem distrações fisiológicas), o quarteto tem uma escolha: oferecer ao deus seu filho não nascido ou ter seu mundo destruído. Escolhem o filho, é claro, e a Terra, egoísta, ressente-se de seus heróis por terem escolhido uma gestação à vida de bilhões. Felizmente, o ressentimento dura pouco, pois um monólogo da mãe conquista a paz mundial e a cooperação planetária: “não sacrificaremos nosso filho pelo mundo, mas não sacrificaremos o mundo pelo nosso filho”, proclamando que todo o planeta é sua família. Solução meia-boca e típica de um estúdio cuja marca registrada é o conservadorismo envergonhado que posa de progressista – como no recente Capitão América: admirável mundo novo, em que a representatividade é verniz “progressista” sobre doses cavalares de excepcionalismo estadunidense e no qual Trump é só um pobre coitado temperamental que precisa de uma boa conversa para ser convencido de seus erros. Num último impulso para mostrar a que veio, Quarteto termina apostando no poder da maternidade para resolver seus problemas: a Mulher Invisível vence o deus Galactus a partir de sua força de vontade para salvar seu filho, e como recompensa é ressuscitada pelo bebê que, aparentemente, também é deus. Sobreviva, trabalhe, mas também se reproduza, pois sua única chance de transcender e de encontrar sentido na luta diária para não passar fome é arranjar outra boca para alimentar.
O Superman de James Gunn, também lançado no mês passado, parece buscar um caminho diferente. Desde sua chegada à DC, Gunn tem ruminado em tela o problema do cinismo, contando histórias sobre personagens oportunistas e antissociais que tentam redescobrir sua humanidade em uma realidade cruel enquanto são utilizados como ferramentas pelo governo sujo dos EUA. Para além dos clichês onipresentes de found family, Esquadrão suicida (2021), Pacificador e Comando das Criaturas dizem sempre respeito a indivíduos quebrados que, conectando-se uns com os outros, precisam se voltar contra o governo que os emprega por perceberem que lutar pela justiça significa combater a política interna e externa dos EUA – só até certo ponto, é claro, pois ainda se trata de um blockbuster hollywoodiano.[3] Gunn ficava com o problema em alguma medida ao invés de superá-lo, reprimi-lo ou legitimá-lo.
No que é talvez sua primeira tentativa de efetivamente escapar do cinismo hegemônico no gênero, Gunn evita suas estratégias de contenção usuais – as zonas morais cinzentas das black ops como forma de representar problemas insolúveis do ponto de vista estadunidense – e recorre a certo “esquerdismo infantil” para pregar que é sim possível acreditar. O Superman deste filme colorido e ensolarado não se preocupa com programas políticos ou realpolitik, só quer fazer a coisa certa e salvar a vida de todos os seres que puder. Há certo humanismo ingênuo, mas refrescante, num filme no qual o povo tem um senso moral forte o bastante para se opor ao seu próprio governo quando chega a hora; o filme retrata um semideus caipira em rota de colisão com os interesses econômicos, militares e políticos do império que o acolheu, não por ter se politizado, mas simplesmente porque é o certo a se fazer. Colisão que, inclusive, é celebrada como triunfo: num filme em que o super-herói mais poderoso dos quadrinhos mais apanha do que bate, seus momentos de triunfo inequívoco são todos contra representações do complexo industrial-militar estadunidense. Fantasia de poder, masculinismo, sim, mas contra tanques de guerra e mercenários armados até os dentes. A própria vitória final do filme depende menos dos músculos de Clark ou de sua disposição a decidir sobre a vida e a morte de outros, como nos filmes de Snyder, e mais de sua colaboração com outros heróis e uma equipe de jornalistas investigativos que, embora parte de um grande conglomerado, são celebrados em sua disposição para levar a público os planos malignos do vilão Lex Luthor.
Este, por sua vez, é explicitamente inspirado em Elon Musk, e não deixa de representar certo desafio à celebrada “democracia” estadunidense; mas sua relação com o Pentágono transmite mais continuidade que ruptura, conjunto de conspiradores tramando com vidas alheias. Seu antagonismo transforma em texto o conflito entre os princípios de um humanismo romântico e a racionalização cínica e instrumentalizante para a qual só importa a eficiência dos meios. O contraste beira a distinção formal: aos mocinhos sobram cores e imaginação, fortalezas de gelo, cães voadores e luz solar abundante, enquanto aos vilões restam ternos e computadores, pragmatismo e apatia (Ultraman e a Engenheira são tão monocromáticos que mais parecem personagens do famigerado “Snyderverso”, diga-se de passagem). Mas mesmo na vilania há um excesso de imaginação. Luthor esbanja inventividade – e certa sensibilidade camp, por que não? Dimensões de bolso, escritórios que viram naves, e até uma criatura horrenda cuja única função no filme é servir como uma espécie de Caronte no inferno criado por seu mestre, o qual se diverte e trata como arte as próprias perversidades.
São estes excessos que Superman parece celebrar acima de qualquer outra coisa. Em sua falta de compromisso com o naturalismo e até princípios básicos de narração e roteiro, o filme apela à nostalgia de quem passou pela experiência de comprar um gibi aleatório na banca de jornais e ver sua imaginação infantil decolar através das páginas, mesmo sem entender o que acontecia. Mais do que isso, parece ansiar por tempos em que o espírito romântico, o senso de destino e a esperança podiam ser vendidos e consumidos como mercadoria sem notas de rodapé ou piscadelas espertas. Que estes anseios tenham se traduzido em um apoio do Superman à causa palestina é menos um mérito do blockbuster e mais um sintoma de que estamos prontos para – e merecemos – muito mais.
(*) André Kanasiro é Editor-chefe e idealizador da revista Zelota. Correspondente internacional da Spectrum Magazine. É biólogo e mestre em Letras estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo (USP).























