Sábado, 6 de dezembro de 2025
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No Céu da Pátria Nesse Instante chega aos cinemas no próximo 14 de agosto com um registro do momento recente em que a democracia brasileira esteve seriamente em risco. O longa-metragem acompanha de perto uma série de personagens dos dois lados do espectro político, revelando suas perspectivas no período que se estende da véspera das eleições presidenciais de 2022 à invasão dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Esses fatos históricos são observados a partir do ponto de vista individual dos personagens, todos eleitores.

“Desde o começo eu queria fazer o filme com um cidadão comum. A pessoa que não está nos holofotes, porque eu acho esse lugar da pessoa que está ao lado, atrás, no bastidor, um lugar muito interessante, privilegiado. São pessoas que estão fazendo aquilo acontecer, trabalham para aquilo existir e ao mesmo tempo ninguém está prestando atenção nelas, nem elas, muitas vezes”, afirma a diretora Sandra Kogut, em entrevista para Opera Mundi.

Cena de "No Céu da Pátria Nesse Instante". <br>(Foto: Reprodução)

Cena de “No Céu da Pátria Nesse Instante”.
(Foto: Reprodução)

O registro das múltiplas visões sobre esse momento político é feito, em muitos momentos, pelos próprios personagens, treinados por Kogut para gravar um diário de seu cotidiano. “E isso também fez com que o filme tivesse sempre um ponto de vista muito específico, de atrás, do meio da multidão, da lateral, porque é onde os nossos personagens estão e isso traz um olhar singular. A gente está realmente com eles e eles são os trabalhadores da eleição”, acrescenta a diretora. Em um país cindido em duas realidades paralelas, o filme torna-se um documento histórico precioso não só sobre as eleições, mas também sobre os medos, as tensões, disputas e expectativas.

Depois dos eleitores, a urna eletrônica é uma quase segunda protagonista. Acompanhamos todo seu percurso, até chegar nos lugares mais remotos do país, e depois seu retorno, para a contagem de votos. Esse percurso, bem como as sequências de explicações sobre seu funcionamento e segurança, cumprem também função didática em um contexto de condenação deste instrumento democrático. “Teve um momento em que eu claramente decidi falar das eleições, porque o sistema eleitoral estava sendo muito atacado. E o sistema eleitoral brasileiro é maravilhoso e é a materialização da democracia. E você vê quanta gente trabalha para aquilo acontecer, um trabalho voluntário”, afirma a diretora, que conseguiu autorização e acesso excepcional pelo Tribunal Superior Eleitoral para a realização da obra.

Cartaz de "No Céu da Pátria Nesse Instante". <br>(Foto: Reprodução)

Cartaz de “No Céu da Pátria Nesse Instante”.
(Foto: Reprodução)

Feito em caráter de urgência, consegue capturar, por exemplo, imagens exclusivas de dentro da invasão dos Três Poderes, por meio de um cinegrafista infiltrado. “(…) acho que nós somos os únicos que fizeram imagens de cinema daquele momento, porque o que as pessoas veem são ou as imagens de longe, aéreas, que a televisão fez, porque ninguém conseguiu entrar ali na hora que estava acontecendo, ou as imagens dos celulares dos invasores”, acrescenta Kogut.

Leia a entrevista na íntegra

No Céu da Pátria Nesse Instante começa com uma voz off com um áudio de WhatsApp de uma mulher falando que não vai participar de um filme de uma diretora de esquerda. Como você conseguiu incluir as participações de personagens de direita?

Eu acho que para você fazer um filme é preciso estabelecer uma relação de confiança com os seus personagens. E também, por princípio, eu nunca minto. Eu nunca poderia dizer que eu penso uma coisa que eu não penso. Então eu acho importante, até para existir a relação de confiança, ser bem transparente. Para fazer esse filme foi preciso inventar um jeito de fazer, porque não dava para fazer do jeito que a gente costuma fazer. Então, ao longo de todo o processo, eu fiquei quebrando a cabeça, repensando o filme ao longo da feitura do filme. E é dessas tentativas que veio a ideia deles fazerem diários, de eu falar com eles toda semana, para criar uma relação, uma continuidade, uma conversa contínua.

Eu também sempre fui muito clara, nunca escondi o que eu pensava e sempre falava para eles assim: “Olha, eu tenho uma curiosidade genuína de tentar entender como você está pensando, mas eu não estou aqui para te convencer de nada”. É claro que como a gente pensava diferente, teve vários embates. Eu também escolhi colocar só um embate no filme, porque senão eu acho que teria sido um abuso da minha posição de poder como diretora. Quando você é diretor, você tem todo o poder no filme, então seria esquisito fazer um filme brigando com algum personagem nessa posição tão desigual. Não foi fácil. Teve gente que começou e desistiu. Não foi tranquilo. Até por isso eu quis começar o filme desse jeito, para situar onde a gente estava.

Sandra Kogut, diretora de "No Céu da Pátria Nesse Instante". <br>(Foto: Arquivo Pessoal / Reprodução)

Sandra Kogut, diretora de “No Céu da Pátria Nesse Instante”.
(Foto: Arquivo Pessoal / Reprodução)

No final do filme você explicita essa tensão. É o único momento em que a percebemos. O tom do final também é bastante diferente do restante, não só por essa tensão que fica explícita, mas por sua aparição, que acontece de forma mais incisiva. Como se deu essa escolha sobre o final do filme?

A edição desse filme foi muito complexa. Ao longo do processo, eu fui percebendo que não poderia ter um filme com embate o tempo todo. Eu acho que quando você faz um filme, você quer explorar uma certa curiosidade, um certo mistério, uma vontade de ver. E eu não queria fazer um filme onde as pessoas já chegassem achando que sabem tudo. Então eu realmente achei que eu só tinha que falar assim no final, quando não tinha outra opção, quando temos o 8 de janeiro.

Ao longo de todo o filme a gente pensava “será que vai ter um golpe?”, “será que vai ter eleição?”. Acho que o país inteiro estava com esse medo também. Foi um dos motivos por que eu quis fazer o filme: a certeza de que a gente estava vivendo uma situação muito fora do normal, muito grave, que teria muitas consequências. E conseguimos atravessar essa eleição, teve a posse, que também foi um momento de muita tensão. E na hora que eu relaxei, meu primeiro domingo tranquilo depois de tanto tempo, teve o 8 de janeiro. O 8 de janeiro materializou esse medo que estávamos sentindo aquele tempo todo. Deu imagem, deu som, deu concretude. E isso também me fez repensar a estrutura do filme, juntamente dessa questão de me colocar. Não tinha mais como não ter o embate.

Percebemos em diversos momentos que são os próprios personagens que filmam a si e seu entorno. Em algumas cenas, notamos que a filmagem foi feita por celular e em outras temos uma qualidade de imagem melhor e mais profissionalismo na gravação. Como foi feito esse planejamento de filmagem? Como foram captados esses materiais diversos, de pessoas diferentes, em diferentes partes do país?

No começo, eu pensei em pedir para os personagens fazerem os diários, porque era uma maneira de penetrar no mundo deles junto com eles. Eu achava importante ter personagens em lugares diferentes do Brasil e era impossível ficar indo para esses lugares. Não tinha dinheiro e ao mesmo tempo a gente filmou momentos chave, então estava tudo acontecendo ao mesmo tempo em um mesmo dia. Então a ideia do diário era construir uma relação e entrar no mundo daquele personagem junto com ele, dentro de uma certa relação de confiança, é claro.

Foi muito trabalhoso tentar formar eles. Eles não eram cineastas, então como iam filmar isso? Foi muito trabalhoso e tinha a sua limitação. Então comecei logo a sentir muita necessidade de ter uma equipe, de ter alguém que não fosse o personagem filmando. Teve um processo muito legal de formar equipes em cada um desses lugares. Por exemplo, tem a Ruth, que é a personagem que está na Ilha de Marajó, Anajás, no Pará, muito distante. Então eu encontrei um funcionário da prefeitura que fazia uns vídeos e acabamos formando ele. Eu explicava como queria, fomos construindo uma linguagem e ele fez imagens maravilhosas. Então fomos tendo essas colaborações, equipes locais muitas vezes de gente que não era do mundo do documentário, mas que foram entrando no filme, foram absorvendo a linguagem e com o passar dos meses aquilo foi ficando cada vez melhor.

Você faz um filme principalmente sobre os eleitores. Lula aparece em um brevíssimo momento e Bolsonaro está completamente ausente. Por que você fez essa escolha?

Desde o começo eu queria fazer o filme com um cidadão comum. A pessoa que não está nos holofotes, porque eu acho esse lugar da pessoa que está ao lado, atrás, no bastidor, um lugar muito interessante, privilegiado. São pessoas que estão fazendo aquilo acontecer, trabalham para aquilo existir e ao mesmo tempo ninguém está prestando atenção nelas, nem elas, muitas vezes. O político, o candidato, está o tempo todo representando um papel consciente da sua imagem. Normalmente, é uma figura infilmável para mim. Essas outras pessoas não. Então o filme é feito sempre desse lugar. Por exemplo, no dia da posse, a subida da rampa é filmada de lado. E isso também fez com que o filme tivesse sempre um ponto de vista muito específico, de trás, do meio da multidão, da lateral, porque é onde os nossos personagens estão e isso traz um olhar singular. A gente está realmente com eles e eles são os trabalhadores da eleição.

Teve um momento em que eu claramente decidi falar das eleições, porque o sistema eleitoral estava sendo muito atacado. E o sistema eleitoral brasileiro é maravilhoso e é a materialização da democracia. E você vê quanta gente trabalha para aquilo acontecer, um trabalho voluntário, muito legal. Então, eu também queria mostrar isso. No final, quando tem aquele embate sobre as eleições, não é uma questão retórica, é concreto. Você acabou de ver no filme como funciona. Eu inclusive aprendi muito fazendo o filme. Eu não conhecia os meandros, os detalhes. Fiz um curso do TSE e a gente aprende no filme. Eu achava importante mostrar isso.

Sim, inclusive, o único embate do filme não é sobre candidatos. É um embate sobre o processo eleitoral, sobre a urna. No filme, a urna surge como a segunda protagonista, depois dos eleitores. E você escolhe algumas personagens diretamente imbricadas ali, trabalhando no processo eleitoral, e consegue imagens bastante didáticas. Como você conseguiu registrar os bastidores, tendo acesso e autorização para filmar esses espaços e todo esse processo?

Em tempos normais, esse filme também teria sido impossível de fazer nesse aspecto. Mas acho que como o TSE estava sendo muito atacado, eles me deram esse acesso e eu acho que eles perceberam que era bom também que alguém fizesse esse filme. Então me deram um acesso excepcional e alguns personagens, inclusive, por exemplo, essa personagem na Amazônia, eu cheguei através deles. Eles foram me abrindo caminhos, até para chegar nas personagens.

E fez parte da excepcionalidade desse momento, porque eles estavam com muito medo também. Não foi simples, porque estavam sendo muito atacados e tinha muita gente com muito medo. E eu acho que para algumas pessoas existir o filme foi um alívio, porque se sentiam menos expostos sozinhos. 

E como foram feitas as imagens do 8 de janeiro? Da mesma forma que a subida da rampa, esse momento da invasão dos Três Poderes adota um ponto de vista que não foi o mais comum na mídia na época. As imagens que você traz também adotam um ponto de vista das pessoas que estavam fazendo aquela invasão.

É preciso dizer que o filme não tem nenhuma imagem de arquivo. Todas as imagens foram feitas para o filme, o que também é algo importantíssimo, porque sentíamos que precisávamos construir um arquivo do presente.

Comentei que tinham equipes espalhadas pelo Brasil pensando no filme junto comigo e com quem eu falava o tempo todo. E teve um cara maravilhoso em Brasília, o Luiz. Quando ele entrou no filme, primeiro até nos desentendemos, mas ele foi se envolvendo e ele era maravilhoso. Ele morava em Brasília e começou a me mandar coisas que eu nem pedia. Ele falava “vi um negócio hoje que eu acho que você vai gostar”. Ele passou a ser um braço, um olho meu em Brasília e foi muito legal o jeito como ele se envolveu com o filme.

Como nós trabalhamos muito juntos, ele sabia bem o que eu queria, porque ao longo dessas filmagens, muitas vezes eu ficava acompanhando de longe. A pessoa filmava, me mandava, eu falava “não faz assim, faz assado”, remoto. Isso era tão atípico que eu acho que também criou uma conexão diferente com o que estava sendo feito. Fazia a pessoa pensar muito na hora que estava fazendo.

Eu estava em casa em 8 de janeiro e me ligou uma personagem, uma das mulheres do PT, e me perguntou se eu estava vendo o que estava acontecendo. Então vi na televisão e falei com o Luís, que disse que ia para lá, “vou me fantasiar de verde, amarelo e vou”. Eu hoje tenho essa consciência, acho que nós somos os únicos que fizeram imagens de cinema daquele momento, porque o que as pessoas veem são ou as imagens de longe, aéreas, que a televisão fez, porque ninguém conseguiu entrar ali na hora que estava acontecendo, ou as imagens dos celulares dos invasores. Mas a gente fez imagens mesmo de cinema. Muita imagem impressionante também que não entrou no filme e eu até fiz uma instalação com essas imagens. E foi isso, foi graças a toda essa situação que a gente tinha já montada. É muito interessante.

E teve também um cara infiltrado naquele acampamento de Brasília, de onde saíram as pessoas para fazer a invasão. Tem imagens do acampamento no filme, mas são poucas. Esse cara foi lá algumas vezes, disfarçado, mas ele foi pego pelos acampados e teve que engolir um cartão de memória da câmera.

Seu filme não é muito explicativo, é muito mais observacional de uma situação bastante brasileira. Ele percorreu diversos países sendo exibido em festivais de cinema em vários continentes. Como tem sido a recepção dele fora e a reação do público estrangeiro?

Quando você faz um filme e começa a viajar para outras culturas, outros países, se pergunta: “será que as pessoas vão entender? Vão entender do mesmo jeito?”. E foi muito impressionante isso que aconteceu, que vem acontecendo e só cresce. Porque na verdade, esse fenômeno que a gente viveu e está vivendo no Brasil, não é só no Brasil. Então, as pessoas, mesmo que não saibam certas particularidades brasileiras, se reconhecem. Porque também o filme é todo construído em cima dos personagens, não é um filme de análise, teórico. E as pessoas nos mais diferentes países se conectaram com o filme de uma maneira que eu mesmo fiquei impressionada.

Eu me lembro que fui numa sessão na França, em um cinema grande, uns 600 lugares, lotado. E depois, no debate, as pessoas fizeram muitas perguntas e dava para ver que elas estavam entendendo profundamente aquele medo, aquela realidade paralela, aquela falta de comunicação com a pessoa que parece capturada pelas fake news. As pessoas estão vivendo tudo isso. Então, à medida que o tempo foi passando, que eu fui viajando com o filme, isso só cresceu.

Eu fui para a Coreia com o filme há pouco mais de um mês e fiquei impressionada. A Coreia viveu uns momentos bem turbulentos e, num debate, teve uma hora que um cara falou “esse é um filme coreano”. Então é isso. E sim, ele dialoga com muita gente.

(*) Nayla Guerra, Graduada em Audiovisual pela ECA-USP, é produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão. É autora do livro “Entre apagamentos e resistências” (Editora Alameda, 2023) e diretora do filme “Ferro’s Bar” (2023).