Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Encontro com o ditador, que estreou no Brasil na primeira semana do ano, desmascara a brutalidade do Khmer Vermelho, regime ditatorial que vigorou no Camboja entre 1975 e 1979. Em uma ficção carregada de realidade, somos apresentados ao regime e às suas consequências por meio do ponto de vista de três jornalistas francófonos. Estes conseguem chegar ao país por meio de um convite feito por Pol Pot, líder do governo, para conhecer a nova realidade local pós “revolução”.

A recepção, desde o começo, já é carregada de tensões: são recebidos por um comboio fortemente armado, colocados em quartos que mais parecem celas de prisão e trancados a chave nos cômodos. O roteiro de viagem é elaborado e totalmente acompanhado por membros do regime, que definem o que eles irão ver e o que podem registrar. Enquanto são incentivados a tirar diversas fotos de uma cooperativa de trabalhadores, modelo implementado pelo regime que, segundo eles, estaria fazendo o país bater recordes de produção agrícola, são proibidos de capturar a imagem de camponeses exaustos que passam por descuido ao seu lado na estrada.

Imagem de Encontro com o ditador (2024): Jornalista questiona representantes do governo.
(Foto: Reprodução / Encontro com o ditador)

 

O primeiro local que visitam é um ateliê voltado à produção de imagens de Pol Pot. Sem que ele esteja presente posando como modelo, seu rosto é pintado em um imenso quadro por artistas instruídos por um membro do governo que orienta: “o retrato não deve ser duro, deve ser mais rosado, ele deve estar sorrindo, deve parecer jovial”. A figura é moldada então à imagem do que o ditador almeja parecer e não ao que ele de fato é. No ateliê, é forjado um personagem que ao longo de todo o filme é iluminado nos quadros e na fala de seus seguidores, mas em suas poucas aparições permanece no escuro e nas sombras, sem revelar seu verdadeiro rosto.

Imagem de Encontro com o ditador (2024): Artistas pintam e esculpem imagens de Pol Pot.
(Foto: Reprodução / Encontro com o ditador)

Esse personagem do retrato e a narrativa de um país pujante é o que o governo tenta apresentar para os jornalistas. Contudo, atentos aos silêncios e às entrelinhas do discurso oficial, percebem aos poucos as camadas da farsa, comum aos regimes ditatoriais. Em supostos sacos de arroz representantes de um boom da produção agrícola, o fotojornalista Paul Thomas (Cyril Gueï) sorrateiramente encontra terra e cascas de grãos. Por trás do banquete oferecido aos jornalistas para demonstrar uma refeição comum à qual toda a população teria acesso, ele encontra fome, desnutrição e miséria. São seus esforços que desvelam para os espectadores o massacre escondido na maquiagem.

Aqui, a ficção encontra a realidade de um país que, em três anos, perdeu dois milhões de pessoas, em um total de uma população de sete milhões, nos poucos e severos anos que durou o Khmer Vermelho. O próprio diretor do filme, Rithy Panh, foi vítima e é um sobrevivente do genocídio. Depois de ver seus pais, irmãos e parentes morrerem de exaustão ou subnutrição, fugiu do Camboja aos 15 anos de idade e se refugiou na França em 1979.

Apesar de construir uma extensa obra sobre o passado nefasto de seu país, Rithy Panh recusa reencenar a brutalidade: “Não sei se há uma linguagem humana para descrever um tal nível de violência e crueldade”, afirma o diretor em seu texto “Sou um agrimensor de memórias”. Em Encontro com o ditador, ele busca alternativas. A violência é apenas sugerida e excluída em elipses, jamais aparecendo em cena. Por sua vez, as consequências das brutalidade, como a população miserável e raquítica, aparecem em imagens de arquivo reais, evitando reencenar com atores cenas do que ele próprio viveu.

Imagem de Encontro com o ditador (2024): Jornalistas são recebidos por comboio fortemente armado.
(Foto: Reprodução / Encontro com o ditador)

Após se formar na prestigiada IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos) em Paris, Panh vem dedicando seus mais de 30 anos de carreira no cinema, entre ficções e documentários, a uma luta pela história e memória de seu país e contra o esquecimento do genocídio. No mesmo texto citado, afirma que, ao filmar histórias do Khmer Vermelho, “rapidamente vi a necessidade de descrever as engrenagens de sua maquinaria mortal, da qual uma das funções era precisamente esvaziar a memória. Quanto mais eu avançava nas minhas investigações, mais evidente me parecia: para submeter todo um povo a uma ideologia única, para eliminar toda resistência, todo pensamento individual, toda intenção de liberdade, deve-se passar pela abolição da memória”.

Encontro com o ditador é mais uma ferramenta de Panh para resistir ao esquecimento de um dos mais brutais genocídios do século XX. A obra, que estreou no Festival de Cannes e vai representar o Camboja no Oscar, deposita no jornalismo um papel chave na denúncia, investigação e combate de massacres. Em um momento de ascensão vertiginosa do conservadorismo ao redor do mundo, é um alerta para os mecanismos de sedução da farsa e a brutalidade que a maquiagem esconde.