Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Não é somente de bacalhau que vive a famosa culinária portuguesa. Também é de doces – e muitos. As receitas mais tradicionais, criadas há séculos dentro de mosteiros e conventos, começam a ser cada vez mais resgatadas, catalogadas e difundidas no país, atraindo também os paladares estrangeiros.

Paulo Pacheco/Opera Mundi

Torta de Guimarães, quitute tradicional de Portugual feito com massa folhada e têm um recheio de doce de chila, ovos e amêndoas

Em comum entre Papos de Anjo, Camafeu, Palha de Abrantes, Orelhas de Abade, Pastel de Tentúgal e Encharcada, para citar alguns exemplos, são os ingredientes à base de ovos e açúcar. A razão é simples: com as claras, as freiras costumavam engomar as roupas e, com as (muitas) gemas restantes, faziam doces para vender e arrecadar fundos. O açúcar vinha das colônias, especialmente do Brasil.

Do mosteiro para o mundo

A “menina-dos-olhos” dessa doceria é o Pastel de Belém, considerado pelo britânico The Guardian como um dos 50 alimentos mais saborosos do mundo. Criado dentro do Mosteiro dos Jerônimos, na zona oeste de Lisboa, a iguaria de massa folhada e recheio cremoso ligeiramente queimado teria passado a ser vendida em uma loja vizinha como forma de sobrevivência dos monges e trabalhadores quando, a seguir da Revolução Liberal, um decreto de 1834 extinguiu as ordens religiosas e fechou os conventos portugueses.

Ovos e açúcar: base do Papo de Anjo, Camafeu, Palha de Abrantes, Orelhas de Abade, Pastel de Tentúgal, Encharcada e muitas outras delícias

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A reportagem de Opera Mundi visitou as instalações da loja, logo transformada em confeitaria, hoje parada obrigatória de qualquer turista que visita a região. A aposta na tradição tem dado certo: as vendas são estimadas em 20 mil pastéis por dia, e a receita, dizem, mantém-se intacta desde o século XIX. E secreta. Dos 150 funcionários, apenas três lidam diretamente com a confecção da massa e do recheio, com contrato de confidencialidade.

Marana Borges/Opera Mundi
Um deles é Ramiro Rodrigues, de 58 anos. O ex-agricultor natural de Quintela de Lampaças (norte de Portugal) começou trabalhando na copa da loja aos 15 anos, depois no balcão servindo os clientes – e, há 25 anos, ascendeu a “mestre”. 

[Ramiro Rodrigues, “mestre” dos doces portugueses]

“Antes de vir para cá, desconhecia inclusive os vários tipos de farinha”, conta. O acesso diário às guloseimas não é problema: “Eu como um ou dois pastéis por dia, e mantenho a forma”, diz, sorridente.

A iguaria popularizou-se pelo país e além-mar, com o nome de “pastel de nata” – apesar de os de Belém não levarem nata (ou creme de leite). Atualmente, outras confeitarias experimentam inovações no recheio – de chocolate, castanhas e até caipirinha – e, aos poucos, ganham terreno no paladar português.

Da tradição oral aos inventários

Se a receita original mantém-se sigilosa por questões comerciais, outros movimentos apostam na sua divulgação a fim de preservar o patrimônio cultural. Para isso fazem o inventário de receitas que muitas vezes sobrevivem graças à tradição oral. 

Sem marcas comerciais fortes, típicas de regiões mais periféricas de Portugal e carregadas de dezenas de gemas (ainda consideradas por muitos como vilãs da saúde), elas acabam por vezes desconhecidas ou pouco apreciadas pelo público estrangeiro.

Em Guimarães, no norte do país, o Museu de Alberto Sampaio incentiva as antigas famílias a partilharem suas receitas, pois o receituário dos conventos locais se terá perdido. 

“É necessário investigar, consultar documentos, manuscritos, falar com quem faz as receitas”, diz Isabel Maria Fernandes, do museu. Assim conseguiram encontrar e comparar as fórmulas das icônicas Tortas de Guimarães e do Toucinho do céu (ambas feitas com amêndoa e chila).

O Toucinho do céu, criado no Convento de Santa Clara, traz uma história curiosa: o nome advém do uso de gordura de porco originalmente. Ainda segundo a tradição oral, as freiras dedicavam tanto tempo a confeccioná-los que prejudicavam os serviços litúrgicos, o que teria gerado uma série de restrições do arcebispo às pasteleiras. Verdade ou não, é graças à dedicação dos antigos doceiros que hoje se pode desfrutar dos sabores dos velhos tempos.