Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Aqui não entra luz (2025) traz um olhar íntimo e pessoal para as segregações e desafios enfrentados por trabalhadoras domésticas no Brasil. Com um retrato da enorme desproporção entre o tamanho das casas e apartamentos e dos “quartinhos de empregada”, o filme denuncia como a arquitetura reproduz as hierarquias e as desigualdades das relações entre patrões e empregadas. Paralelamente, as memórias da diretora evocam afetos e costuram reflexões sobre as relações entre as trabalhadoras domésticas e suas filhas, a partir de sua própria experiência com sua mãe.

Em Aqui não entra luz, Karol Maia olha para o tema do trabalho doméstico, já tratado em diversos filmes brasileiros, porém conferindo às empregadas a exclusividade do ponto de vista e focando na relação entre elas e suas próprias filhas:

“Acho que esses filmes, que são referências nesse assunto atualmente no Brasil, são os filmes do ponto de vista dos patrões. Meu filme é uma oportunidade de um novo ponto de vista sobre esse assunto, um ponto de vista de uma filha de trabalhadora doméstica. Na versão da minha história, a minha relação não era com a patroa da minha mãe, era com a minha mãe. A minha sensibilidade, meus pontos de atenção não estão voltados para os conflitos da patroa, estão voltados para o conflito das trabalhadoras domésticas. As patroas estão lá, porque são um assunto constante no filme. O conflito está dado. Trazê-lo para a narrativa de uma forma mais incisiva poderia ser um desvio do meu objetivo, que era valorizar essa profissão e valorizar essas trabalhadoras”, afirma a diretora.

Cena de 'Aqui não entra luz', de Karol Maia. (Foto: Divulgação)

Cena de ‘Aqui não entra luz’, de Karol Maia. (Foto: Divulgação)

Em entrevista exclusiva para Opera Mundi, a diretora Karol Maia comenta sobre a pesquisa e produção de seu filme, premiado no 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro com o troféu de Melhor Direção e o Prêmio Zózimo Bulbul (concedido por júri indicado pelo Centro Afrocarioca de Cinema e a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro – APAN). O longa-metragem terá duas exibições na prestigiada Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ambas com a presença da diretora e sua mãe, personagem do filme. Em seguida, fará sua estreia mundial em um dos maiores festivais de documentário do mundo, o IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã). Confira abaixo a entrevista com Karol Maia.

Você constrói no filme uma reflexão muito interessante sobre a arquitetura das casas, evidenciando as proporções de tamanho em termos de imagens e metros quadrados. Percebemos que os “quartinhos de empregada” são pequenos não por falta de espaço, já que as casas e apartamentos mostrados são enormes, mas por uma escolha. Ver uma casa com três mesas de jantar em um só cômodo, com um quarto de empregada tão pequeno, é muito impactante. Como você conseguiu a autorização para entrar nesses espaços e fazer esses registros que se tornam uma denúncia das relações entre patrões e empregadas?

Na época da pesquisa do filme, em 2018, a gente lançou um formulário no Facebook convidando as pessoas a se inscreverem para abrir suas casas para pesquisarmos e, em outro momento, filmarmos. A gente filma duas arquiteturas: a arquitetura colonial e a arquitetura moderna. A colonial era mais fácil de ser acessada, porque muitas fazendas viraram pontos turísticos e já estão documentadas em livros de história. Mas os apartamentos são espaços extremamente particulares e privados e o formulário no Facebook foi o jeito de acessá-los. Usamos as redes sociais para convidar as pessoas a abrirem suas casas para a gente, sempre explicando tudo e deixando muito claro qual era nosso objetivo – chegar até o quarto de empregada, entender o contraste do quarto com a casa inteira.

E foi bem interessante, porque conseguimos uma diversidade que vai desde casas até apartamentos. E, dentro disso, também uma diversidade de quartinhos: quartinho com janelas, sem janela, quartinho com banheiro dentro, quartinho que não necessariamente era um quartinho, mas ainda assim estava na área de serviço. Eu acho que tem um simbolismo muito grande, que é para além do tamanho do quarto. É como ele é, onde ele está, por que ele está onde ele está, e por que ele existe.

As personagens trazem histórias de vida muito impactantes e uma história se conecta com a outra, seja por aproximações, seja por distanciamentos. Como foi a pesquisa de personagens? Como você chegou até elas? Por que decidiu trazer pessoas de vários estados?

Eu conheci a maioria delas por meio de sindicatos. Tanto por sindicatos locais, de cada estado e cidade, quanto por indicação de amigos e por organizações que dialogam com as trabalhadoras domésticas. Por exemplo, em Belo Horizonte, foi por meio do Muquifu [Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos], que é uma uma instituição que fica na Favela do Papagaio e que faz esse cuidado. O Muquifu é uma ONG, com uma capela e um museu. E lá tem um museu da empregada doméstica, que é um espaço de acolhimento, um espaço seguro e de reconhecimento desse trabalho pela via artística, da criação da memória pelas artes plásticas. Eles reproduziram um quartinho de empregada, com vários elementos, elementos de vida, como um ursinho, a televisão… As pessoas que vão visitar o quartinho deixam um recado para as suas avós ou mães que foram empregadas domésticas. É um lugar bem interessante.

Sobre a escolha dos estados – que são Rio de Janeiro, Maranhão, Bahia e Minas Gerais –; foi porque a pesquisa começou com um mapeamento dos quatro estados que mais receberam mão de obra escravizada no Brasil colonial. São esses estados que durante os quase 400 anos de escravidão receberam essas pessoas de forma massiva. E por isso fui para esses lugares. A partir desse mapeamento, encontramos os diferentes meios de sustentação econômica daquele Brasil, como o ouro em Minas Gerais e o café no Rio de Janeiro. E isso mudava as formas de moradia, onde e como eram as senzalas. Por exemplo, em uma mina em Ouro Preto, ela podia ser um casebre que se destrói rapidamente para você ir pro próximo ponto de exploração da obra prima. Isso também influenciava as formas de moradia dos escravizados dentro de fazendas e de lugares de controle de corpos.

Temos no cinema brasileiro vários filmes que abordam esse tema das trabalhadoras domésticas, mas de perspectivas bem diferentes da sua. Você foca exclusivamente nelas e não mostra os patrões. Conhecemos as relações entre empregadas e empregadores exclusivamente por meio dos relatos que elas contam. Poderia comentar essa decisão?

Quando pensei em fazer esse filme anos atrás, tinha a intenção de explicar o tamanho dessa problemática, de trazer pontos de vistas da sociologia, da antropologia, da arquitetura… Mas isso foi se enfraquecendo para mim, porque a importância do ponto de vista das trabalhadoras foi ficando mais relevante do que qualquer outro. Pensei “quem é mais especialista nesse assunto do que elas mesmas?”.

Acho que a decisão de não ter patroa é porque eu não queria dar esse espaço para outras vozes que não fossem as delas. Não acho que precise. Conto com uma certa colaboração do espectador, uma vez que o trabalho doméstico no Brasil é extremamente comum e popular. Nós sabemos quem são nossas patroas no sentido narrativo. Por que trazer esse contraponto, uma vez que ele já está posto?

Acho que esses filmes, que são referências nesse assunto atualmente no Brasil, são os filmes do ponto de vista dos patrões. Eles já estão feitos. Meu filme é uma oportunidade de um novo ponto de vista sobre esse assunto, um ponto de vista de uma filha de trabalhadora doméstica. Na versão da minha história, a minha relação não era com a patroa da minha mãe, era com a minha mãe. A minha sensibilidade, meus pontos de atenção não estão voltados para os conflitos da patroa, estão voltados para o conflito das trabalhadoras domésticas. As patroas estão lá, porque são um assunto constante no filme. O conflito está dado. Trazê-lo para a narrativa de uma forma mais incisiva poderia ser um desvio do meu objetivo, que era valorizar essa profissão e valorizar essas trabalhadoras.

Sim, e os momentos mais emocionantes do filme são aqueles que mostram a relação das mães com as filhas e suas conquistas, como quando a mãe que diz que o dia mais feliz da sua vida foi quando sua filha se formou na faculdade. Como foi seu processo de se colocar no filme e colocar sua mãe nele? Percebemos uma relutância dela em aparecer. Como foi para ela se ver no filme pronto?

Quando eu falo no filme que eu comecei esse processo convidando a minha mãe para participar dele, foi o que de fato aconteceu. E eu sinto que essa chegada da minha mãe durante o meu processo com o filme foi sendo construída também com a minha relação com a própria história que eu estava contando. O que tem ali no final, no nosso encontro, é bastante visceral, porque era o que nós duas estávamos esperando e precisando. No sentido quase prático, eu precisava terminar o filme, mas ao mesmo tempo eu precisava me reconectar com a minha mãe e ela comigo também nesse lugar do amor, do cuidado.

Eu sempre chamei a minha mãe pra perto do filme. Sempre falava: “olha, mãe, sabe aquela pessoa que eu filmei? Falei com ela de novo” ou “quer ver alguma coisa da entrevista, deixa eu te mostrar”. E ela não queria, dizia que só queria ver no cinema.

Quando ela assistiu o filme no Festival de Brasília, foi muito bonito. Para mim, uma das grandes conquistas daquela semana de festival foi ver a minha mãe se apropriando do filme e falando: “a gente veio estrear o nosso filme”, “o nosso filme vai passar em muitos outros lugares”. Acho que essa foi uma das grandes belezas dessa estreia em Brasília. E ela está animada, disse que vai assistir as duas sessões da Mostra Internacional.

Qual sua expectativa para exibição do filme na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo?

A exibição de São Paulo é a que eu mais estava esperando, por ser a minha cidade, por ter a minha rede de amigos, grupos de trabalho e família. Espero que seja uma sessão muito bonita e muito celebrativa, porque eu sei que muitas pessoas que torcem por mim vão estar lá. E achei lindo que a gente está numa programação como a Mostra de São Paulo, que tem filmes incríveis do mundo inteiro. E o filme vai ser exibido em dois cinemas lindos, que eu sou apaixonada, sobretudo Cinesesc. É uma das minhas salas preferidas de São Paulo. Então eu estou bem animada assim para essa exibição. Estou ansiosa.

Serviço

Aqui não entra luz será exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo nos dias:

25/10 – 21h30 / Reserva Cultural – Sala 2

27/10 – 16h50 / CineSesc

O filme conta com recursos de acessibilidade por meio do aplicativo MLoad. Para mais informações sobre a acessibilidade na mostra acesse: https://mostra.org/acessibilidade

Ingressos disponíveis para compra 4 dias antes de cada sessão pelo app do evento e pelo site da Velox, sempre a partir das 9h. No dia da sessão, uma pequena cota estará disponível para compra diretamente na bilheteria do cinema.

Segundas, terças, quartas e quintas: R$ 26,00 (inteira) | R$ 13,00 (meia).

Sextas, sábados e domingos: R$ 32,00 (inteira) | R$ 16,00 (meia).

Mais informações em: https://mostra.org/

(*) Graduada em Audiovisual pela ECA-USP, Nayla Guerra é produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão. É autora do livro “Entre apagamentos e resistências” (Editora Alameda, 2023) e diretora do filme “Ferro’s Bar” (2023).