Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Em cartaz na Netflix desde segunda-feira (15), o documentário Apocalipse nos Trópicos começa onde terminou o filme anterior da diretora Petra Costa, Democracia em Vertigem (2019): no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Dedicado a investigar a caixa de Pandora aberta por aquele golpe, Apocalipse nos Trópicos tem uma tese forte, de que o apocalipse brasileiro dos últimos nove anos tem tudo a ver com o avanço voraz do fundamentalismo evangélico no país neste século XXI.

A vertigem do filme anterior se potencializa, e Petra Costa tem de dar conta de uma hecatombe de acontecimentos políticos: a queda de Dilma (Michel Temer e sua transição antidemocrática nem são mencionados), a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, a eleição do extremista de direita Jair Bolsonaro, a Vaza-Jato (Sérgio Moro e Deltan Dellagnol aparecem apenas de raspão), a soltura de Lula, a política de extermínio de Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19, o transe bolsonarista vestido de verde e amarelo e de slogans pró-ditadura nas manifestações de rua, o terrorismo político de extrema direita nas eleições de 2022, a re-reeleição de Lula, a nova tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. Uma versão assoviada da “Aquarela do Brasil” (1939) de Ary Barroso embala algumas dessas cenas, conferindo a elas um travo agridoce, mais acre do que doce.

O pastor Silas Malafaia durante cena do documentário 'Apocalipse nos Trópicos', de Petra Costa. (Foto: Divulgação / Netflix)

O pastor Silas Malafaia durante cena do documentário ‘Apocalipse nos Trópicos’, de Petra Costa. (Foto: Divulgação / Netflix)

Pela tese de Petra Costa, Bolsonaro poderia ser o protagonista de Apocalipse nos Trópicos, a bordo de sua radicalização pró-evangélica para chegar ao poder e da nomeação do pastor André Mendonça, “terrivelmente evangélico”, para o Supremo Tribunal Federal. Outro personagem toma sua frente, no entanto, apresentado no limite como ventríloquo a comandar das trevas as ações do bonecão bolsominion. É o pastor Silas Malafaia, onipresente no documentário inclusive pelo acesso exclusivo obtido por Petra Costa a seu dia a dia, à sua doutrina de envolvimento direto da religião na política e às suas maquinações atrás, à frente e ao lado de Bolsonaro. A certa altura, Malafaia leva Petra ao encontro de um Bolsonaro sorridente, satisfeito e folgazão, para uma entrevista de circunstância.

Os militares, outro braço responsável pelo meteórico triunfo do capitão reservista do Exército entre 2018 e 2022, aparecem discretamente na trama. O general Walter Braga Netto, preso desde dezembro passado, é o único a ser denominado em Apocalipse nos Trópicos. A tese teocrática padece com a ausência do polo militar e o do polo empresarial (o empresariado é apenas citado, sem nenhum nome para ilustrar), e talvez esses outros dois pés (de um tripé?) devessem compor outro filme, ou outros filmes, para completar o retrato do apocalipse brasileiro.

Obedecendo ao roteiro teocrático, Apocalipse nos Trópicos se inicia por uma entrevista, no Congresso Nacional de 2016, com o pastor e deputado Cabo Daciolo, que empunha uma Bíblia e profetiza um “novo” Brasil, cercado por um grupo de crentes que vieram benzer as cadeiras legislativas. Juntos, os militantes evangélicos e o cabo-deputado-pastor rezam de braços dados, absortos num movimento pendular que lembra o tombo do convés de um navio (um Titanic?). O filme não chega a citar que Daciolo concorreria à presidência do Brasil, por um partido batizado de Patriota, nas eleições de 2018, que por fim consagraram outro cabo-capitão-deputado impregnado de discurso “evangeliquês” (esse termo é usado por Malafaia no filme, em outras circunstâncias). Outras figuras do apocalipse fundamentalista aparecem apenas incidentalmente, casos de Edir Macedo, Damares Alves, Marcelo Crivella e o líder da bancada evangélica, Sóstenes Cavalcante (que celebra o aumento de sua bancada, de duas para nove fileiras de cadeiras da Câmara). O protagonista e porta-voz dos evangelhos é mesmo Malafaia.

Desde cenas de entrevistas com cidadãos evangélicos em sua casa numa comunidade, à frente de uma nota gigante de cem dólares utilizada como quadro de parede, Apocalipse acompanha a escalada religiosa, que coincide com teores exponenciais de violência política. Os termos que povoam o filme são suficientes para presentificar a agressividade e a ambiguidade entre fé e ódio: “Brasil esquerdopata”, “intervenção militar”, “fuzilar a petralhada”, “clube antifeminista”, “marxismo cultural”, “controle do pensamento”, “chega de PT”, “partido das trevas”, “milagre”, “a ditadura voltou!” (na voz de uma jovem militante no dia da eleição de Bolsonaro), “Deus acima de todas as coisas”, “fim do mundo”, “todo mundo vai morrer” (de Bolsonaro em tempo de Covid), “está todo mundo morrendo sem oxigênio” (em Manaus, 2021), “Jesus pegou o chicote e está arrebentando”, “igreja unida jamais será vencida”, “Estado cristão”, “o Brasil é do Senhor Jesus”, “comunismo”, “trans”, “ditador de toga” (sobre Alexandre de Moraes), “guerra santa”, “aqui (no celular) a gente destrói os caras”, “eleição fraudulenta”, “não percam a fé” (de Braga Netto para seus fiéis), “tem que ser na força”, “as trevas”… 

Grande parte desses termos é proferida pela boca santa de Silas Malafaia. Profeta da asa quebrada, ele determina que Lula perderá a eleição de 2022, porque “está ferrado no mundo evangélico”. Com Lula já eleito, Malafaia afina o discurso em entrevista a Petra, criticando seu suposto pupilo Bolsonaro como “omisso” e “covarde” e afirmando que Lula teve “postura de um líder” ao não fugir diante da ameaça de prisão. 

Imagens como as de cruzes em covas enfileiradas num cemitério no auge da crise da Covid levam a pensar em como o avanço religioso trouxe o inferno para perto, e Petra Costa confirma essa impressão enfatizando o conteúdo do livro bíblico do apocalipse e a tese oitocentista de que a guerra leva à paz e à liberdade e de que tudo deve piorar progressivamente até que ocorra o retorno final de Jesus Cristo. Como um dos grandes achados de Apocalipse nos Trópicos, a diretora exibe o dado curioso, perturbador, aparentemente contraditório, de que são atores religiosos que, atraídos pelo fim do mundo, pregam e precipitam o “quanto pior, melhor”, o atiçar das fogueiras, a “guerra santa” (a palavra “Israel” só é pronunciada uma vez, na boca de Bolsonaro), a destruição.

À parte tudo de novo e surreal que tem acontecido desde a conclusão das filmagens, as cenas perfeitas para encerrar o filme são as da destruição deixada pela turba bolsonarista em Brasília no 8 de janeiro de 2023. “Nós somos cupins voadores de mármore!”, gargalha uma manifestante na Esplanada, no ápice apocalíptico de Apocalipse nos Trópicos, antes de o filme se encerrar com a voz de Nelson Cavaquinho cantando sua obra-prima “Juízo Final” (1973). A tese perde alguma tração exatamente nessas cenas, em que é jogada a escanteio a responsabilidade militar, empresarial, etc. pelo apocalipse zumbi que o Brasil viveu e continua a viver até os dias atuais, nas corcundas de Trumps e de Bolsonaros. De todo modo, Apocalipse nos Trópicos prova e comprova, com folga, que o inferno é aqui mesmo, agora mesmo.

(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)