'Ainda temos o amanhã' coloca 'Barbie' no chinelo, mas também é ode ao feminismo liberal
Sem virar panfleto de esquerda, filme italiano retrata realidade da maioria das mulheres, com jornadas triplas de trabalho e maus-tratos domésticos, mesmo desviando-se de soluções estruturais
Filme da diretora italiana Paola Cortellesi em cartaz nos cinemas brasileiros sob o título Ainda temos o amanhã, C’è ancora domani (2023) é um fenômeno de bilheteria em seu país de origem. Críticas um pouco deslumbradas chegam a considerá-lo “um grito da liberdade feminina”. Ao oposto disso, se pudesse resumir, diria que se trata de uma bela bobajada liberal, apesar de suas qualidades. A obra não está tão distante assim do feminista americanóide Barbie (2023), mas é inegavelmente de melhor qualidade.
Tudo se passa em preto e branco. A dinâmica, porém, é a de um filme em cores, com toques modernosos, a exemplo de uma trilha sonora que inclui até rock, lembrando ousadias do neorrealismo italiano dos anos 1940. Encenando a Itália empobrecida e ocupada do pós-guerra, em 1946, o filme narra a história de Délia (interpretada pela própria Paola Cortellesi), uma bela mulher trabalhadora, porém maltratada pela vida empobrecida e por seu marido, Ivano, um machista brutamontes que a surra com frequência.
Para além de limpar, cozinhar e cuidar de três filhos, a protagonista trabalha como uma condenada em vários bicos: trata de idosos, conserta guarda-chuvas numa pequena oficina, faz serviços de costura e ainda lava roupas. Ao final da extenuante jornada, entrega o seu dinheiro ao cafajeste do marido, com exceção do pouco que esconde para um sonho secreto.
Qualquer mísera falha de Délia é desculpa para o esposo surrá-la. Como esperado, algumas feministas, revoltadas, criticaram suposta romantização da violência doméstica, porque a diretora retratou cenas da pancadaria como uma espécie de balé, e ainda caricaturou condutas machistas com humor, sem nenhuma palestra moralista. A ideia de Cortellesi, de fazer daquela coisa horrenda algo quase cômico, é, em verdade, bastante original e prende a audiência: a gente ri ou fica chocado? Tanto faz. Apenas um psicopata não reprovaria a cena.
Apesar dessas e outras características interessantes, além de boas atuações, a obra é uma grande ode ao feminismo burguês e à democracia liberal, como se opressão das mulheres pudesse ser resolvida com uma boa dose de coragem feminina, compromissos de sororidade e uma cédula eleitoral na mão. Trata-se de um filme político, claramente. De matiz liberal, porém.

Foto Pandora Filmes
A tradicional família italiana é observada pela ótica feminista liberal pela diretora Paola Cortellesi
Tem beleza e ritmo. Faz rir, emociona, cria empatia e… politiza. Cineastas de esquerda do nosso país, que querem fazer filmes políticos, deveriam assistir à película italiana com um olhar curioso. Nada contra os filmes cult: são incríveis, ao contrário do que pensam idiotas anti-intelectuais que execram o gênero. Obras como Bacurau (2019), por exemplo, têm o seu lugar. Mas a esquerda deveria se dedicar a também fazer filmes políticos mais palatáveis e sutis para o grande público, sem militância explícita e panfletária – normalmente caricata, chata e de má qualidade.
“Ainda temos o amanhã” é bom antídoto a esse tipo de desvio. Por mais que críticos torçam o nariz para alguns dos aspectos cinematográficos, tem sido capaz de arrastar milhões às salas de exibição, equilibrando mensagem política e entretenimento típico de Hollywood. A maior parte das pessoas gosta da experiência, saindo satisfeita: assiste a bom filme, com reflexões relevantes e artisticamente agradável, distante da ladainha de uma palestra, e sem ter que ficar depois quebrando a cabeça pra entender o que diabo se passou nas cenas, à la Godard – que, embora maravilhoso, convenhamos, agrada a poucos.
Fazer filmes políticos ou artísticos apenas para 1% da população não parece uma boa ideia. Enquanto a gente se regozija com obras militantes, os liberais continuam conquistando as massas e impondo sua visão hegemônica de mundo. Até a extrema direita, que se aventura no cinema com porcarias como O som da liberdade (2023), vai conquistando seu espaço.
Isso não significa rebaixar o nosso cinema nacional. Somos capazes de fazer filmes para o grande público, como Tropa de elite (2007) ou Cidade de Deus (2002), apesar das polêmicas. O Auto da Compadecida (2000), de Guel Arraes, é outra produção de destaque. Internacionalmente, lembremos como Infiltrado na Klan (2018), de Spike Lee, e Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, que tiveram excepcionais bilheterias, conseguiram passar boas mensagens.
“Ainda temos o amanhã” também pertence a essa linhagem: deu um banho ao provar, mais uma vez, que não são apenas filmes de heróis ou besteiróis norte-americanos que podem arrastar milhões ao cinema.
(*) Susana Botár é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e doutoranda pelo mesmo programa.























