Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A história de Omarino e Aredomi, dois indígenas escravizados e levados à força para europa, é contada e fabulada em A memória das borboletas (2025), de Tatiana Fuentes Sadowski, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e agraciado com uma menção especial do prêmio de documentários no Festival de Berlim, além do prêmio da crítica na seção Fórum do mesmo festival. Em uma jornada sensorial, o filme peruano se apropria do passado, alterando os sentidos das imagens de dor e violência para transformá-las em resistência dos povos indígenas e de suas memórias.

Nos arquivos amazônicos do início do século 20, a diretora recupera a brutalidade do ciclo de extração da borracha no Peru, com o genocídio das populações indígenas cometidos pela empresa inglesa Peruvian Amazon Rubber Company na região do Putumayo. Essa história é contada também pelo filme brasileiro Os segredos do Putumayo (2020), de Aurélio Michiles, que, assim como o longa peruano, também se debruça sobre os diários e expedições do inglês Roger Casement, testemunha das inúmeras torturas, trabalho forçado, estupros e homicídios bárbaros cometidos contra os povos indígenas no começo do século passado.

A memória das borboletas (2025), de Tatiana Fuentes Sadowski. (Foto: Divulgação)

A memória das borboletas (2025), de Tatiana Fuentes Sadowski.
(Foto: Divulgação)

Para a realização de A memória das borboletas, Tatiana Fuentes passou dez anos pesquisando o assunto e os materiais audiovisuais disponíveis em acervos de diversos países, incluíndo a Cinemateca Brasileira. Os materiais encontrados são costurados com filmagens atuais feitas pela equipe em Super-8 na mesma região onde viveram e percorreram os protagonistas da obra, Omarino e Aredomi. Segundo a produtora, Isabela Madueño Medina, que acompanhou a exibição do filme na Mostra Internacional, os rolos de película com as novas filmagens eram enterrados nas aldeias onde gravavam, para que absorvessem e recuperassem a memória da terra, que também se transforma.

A textura da película e as marcas de deterioração dos materiais de arquivo se confundem com os novos, embaralhando passado e presente, confundindo as temporalidades, que não podem mais ser distinguidas na obra. Trechos e imagens são também repetidos, criando uma sensação temporal espiralar, que rompe com a linearidade enfatizada pela estética ocidental. “A intenção do filme era que não se pudesse diferenciar passado e presente. Porque se antes a borracha dizimou as populações, agora há outras questões, como o desmatamento, a contaminação dos rios, a expulsão das populações das terras. A intenção era buscar essa atemporalidade”, afirmou Madueño Medina.

A equipe trabalhou também com intervenções diretas nas imagens de arquivo, como a adição de sons, que aumentam o realismo de filmagens silenciosas dos anos 1910, e a inclusão de filtros coloridos, como um vermelho intenso sobre um rio caudaloso, como se a floresta jorrasse sangue. Por sua vez, os retratos de Omarino e Aredomi são reproduzidos, imprensos e compartilhados com os povos indígenas de hoje, sobreviventes do genocídio, que se identificam nas fotografias e desenham sobre elas, inserindo traços de sua realidade atual e de sua especulação sobre o passado.

Dessa forma, as imagens de arquivo são convocadas, reapropriadas e subvertidas, materializando o testemunho das violências, porém fabulando resistências. A memória das borboletas evidencia, assim, a importância documental e o potencial criativo que reside nos arquivos fílmicos, que são aqui vivos, vibrantes e pulsantes, ressignificados em um gesto radicalmente decolonial.

(*) Graduada em Audiovisual pela ECA-USP, Nayla Guerra é produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão. É autora do livro “Entre apagamentos e resistências” (Editora Alameda, 2023) e diretora do filme “Ferro’s Bar” (2023).