Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Quando me perguntam qual é o disco de rock brasileiro que mais gosto, respondo sem hesitar: o primeiro Jards Macalé, de 1972. Não tem pose, não tem firula, não tem a vontade de ser moderno. É brasileiro, é muito rock. Tem rebeldia legítima por dentro do som, como um recado a cada faixa: eu não vou caber no que vocês esperam de mim.

Jards, Lanny Gordin e Tuty Moreno montam ali o tradicional power trio. Haja power. Baixo, bateria, violão/guitarra – e um mundo musical inteiro comprimido nesse formato. Eles esmagam corações e desorganizam cabeças juntos com Wally Salomão, Capinan e Duda Machado com “Meu Amor Me Agarra e Geme e Treme e Chora e Mata”, “Farinha do Desprezo”, “Mal Secreto”, “Hotel das Estrelas”, e a mais triste das músicas tristes já feitas no Brasil: “Movimento dos Barcos”.

Jards Macalé em show em São Paulo, em agosto de 2018. (Foto: Rodrigo Argenton / Wikimedia Commons)

Jards Macalé em show em São Paulo, em agosto de 2018.
(Foto: Rodrigo Argenton / Wikimedia Commons)

O Brasil do início dos anos 70 não sabia que era possível afundar tanto a delicadeza dentro da distorção e de um violão torto. Macalé soube.

A força do disco nasce desse duplo gesto: o recolhimento obsessivo da voz e violão de João Gilberto e o incêndio dos trios de Jimi Hendrix. João como ethos. Hendrix como exo. Entre um e outro, Macalé encontra o próprio chão – um chão torto, feito de tensão, silêncio, ruído, desalinho e beleza. É ali que ele submerge de vez, como se dissesse que a música não serve para acomodar ninguém, nem ele mesmo.

Curioso – e adorável – é que a canção de Macalé que mais amo nem está nesse disco. Os frutos são tantos. Ela mora no segundo, Aprendendo a Nadar, de 1973. É ali que a parceria Jards/Waly Salomão acende de vez na morbeza romântica, como se dois mundos colidissem para criar uma língua própria: “Anjo Exterminado”, “Dona do Castelo”, “Real Grandeza”. Waly com sua poesia oblíqua, cheia de brilho torto; Macalé com aquele violão que nunca buscou perfeição.

Mas não é também com Waly que a música de Jards acende o meu coração naquele álbum. O poeta e jornalista Orestes Barbosa, ainda na década de 40, escreveu com Valzinho a angulosa – letra e melodia angulosas de “Imagens”, tudo isso coube certinho no anguloso Macalé das barras da ditadura e das dunas do barato:

“A lua é gema do ovo
No copo azul lá do céu
Se a imagem é maluca
Se eu sou mau compositor
É que tenho a alma em sinuca
Maluca pelo teu amor

O beijo é fósforo aceso
Na palha seca do amor
Porém foi o teu desprezo
Que me fez compositor.”

Talvez uma das músicas que mais amo na vida.

Um dia vi Jards de longe. Eu tava descendo um morro perto de uma cachoeira na Vila de Maringá, em Visconde de Mauá. Lá longe, ia de calça vermelha (de verdade). Não o chamei, não tietei. Mas não me esqueço.

Pois é, Jards. Agora é adeus. Sobre o borralho da sarjeta chegou o fim. Sim, escrevo tudo isso triste de verdade. Perdemos Jards, o Macalinas. Fica o rastro de alguém que atravessou a ditadura sem um minuto de docilidade; que reinventou o violão brasileiro com aquele misto de doçura ferida e ataque preciso; que puxou a canção para territórios onde quase ninguém arriscou ir; que tratou a poesia como companheira de briga, e fez da própria vida um gesto contínuo de liberdade. Fica a falta – larga, funda – da presença dele. E fica a música que continua respirando.

Boa viagem, camarada.

(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.