A escola secreta de violão de Paulinho Nogueira
Livro biográfico resgata história do violonista paulista Paulinho Nogueira, que inventou um instrumento, a craviola, usada por Jimmy Page no Led Zeppelin
Protagonista histórico da chamada música popular brasileira, o violão tem uma centralidade tal a ponto de seus maiores gênios constituírem autênticas escolas estéticas do instrumento, casos dos paulistanos Canhoto (1889-1928) e Garoto (1915-1955), do carioca Luiz Bonfá (1922-2001) e do fluminense Baden Powell (1937-2000), entre muitos. Outros violonistas, por esses ou aqueles motivos, têm trajetórias menos propagandeadas, e nesse rol se encontram João Pernambuco (1883-1947), vindo do Nordeste e tido como “primitivo” em seu tempo; a fluminense Rosinha de Valença (1941-2004), que passou doze anos em coma antes de morrer; e o discretíssimo Paulinho Nogueira (1927-2003), criador de um método de ensino de violão amplamente seguido por violonistas iniciantes, que simbolicamente ficou conhecido como “método Paulinho Nogueira”.
Esse último violonista sai de relativo esquecimento agora, 22 anos depois de sua morte, ao se tornar tema do livro biográfico “Paulinho Nogueira – Simplesmente” (Acorde!/Hedra), assinado pelo músico Marcos Martins, que é percussionista da banda Língua de Trapo, e pelo jornalista Vitor Nuzzi, autor já de biografias importantes de Geraldo Vandré e Hermeto Pascoal. Os dois autores dão conta em breves 160 páginas de uma história que não parece ser tão longa e caudalosa, mas revela sua riqueza a cada página de leitura. De cara, no prefácio do livro, o violonista Ivan Paschoito chama atenção para a economia de escassez de Paulinho Nogueira em relação a seu instrumento de eleição: ele compôs apenas dez peças especialmente para o violão.

O violonista Paulinho Nogueira em foto na capa do LP “Moda de Craviola”.
(Foto: Reprodução)
Paulinho deixou menos de três dezenas de discos lançados, a maioria deles exclusivamente instrumentais. Também se arriscou como cantor de suas próprias composições em meia dúzia de álbuns, e sua voz doce (em certo sentido semelhante à de Baden Powell) frequentou as paradas de sucessos com “Menina”, em 1970. “Menina/ que um dia conheci criança/ me aparece assim de repente/ linda, virou mulher”, dizia a balada interiorana cuja letra provavelmente seria rechaçada nos dias atuais, mas que foi regravada ao longo das décadas por Benito di Paula, Toquinho, Pena Branca e Xavantinho, Wando, Mart’nália, artistas de axé, pagode e sertanejo.
Outra de suas canções emblemáticas, a filosófica e semi-sinfônica “Dez Bilhões de Neurônios” (1972), foi gravada ligeiramente por Maria Bethânia, única incursão da MPB de ponta sobre sua obra: “São dez bilhões de neurônios na tua cabeça/ são dez bilhões, dez bilhões/ são dez bilhões de neurônios, neurônios na tua cabeça/ de força, de fogo, de luz/ e pra tua cabeça pensar, pensar, pensar/ e pra tua cabeça viver, viver, viver/ hay que encenderlos todos”.
Noutro momento de invenção, em 1968, Paulinho Nogueira foi o criador de um instrumento novo, de formato atípico e elegante, que batizou de craviola, com características híbridas de cravo, violão e viola caipira. Um dos discos que deram vazão às possibilidades do instrumento foi batizado, espirituosamente, de Moda de Craviola, em 1975, com arranjos do maestro Nelson Ayres, sacramentando uma musicalidade incomum de fusão entre música urbana e rural, interiorana e da capital, popular e erudita.
Acredite quem puder, Jimmy Page se deixou seduzir pela craviola de Paulinho e a tocou em “Tangerine” (1970), do terceiro disco de sua banda Led Zeppelin. Em 1971, Page apareceu portando uma craviola em foto do jornal musical britânico Melody Maker, reproduzida no livro. Discretíssimo, Paulinho Nogueira não capitalizou a façanha. Mesmo sem ser muito associada ao criador, a craviola singro os sete mares: apareceu nas mãos de Pepeu Gomes no clássico Acabou Chorare (1972) dos Novos Baianos; tornou-se instrumento favorito de Tetê Espíndola (que até fez um show chamado Craviolando); foi vista nos braços da violonista Badi Assad, do guitarrista Andy Summers; e assim por diante.
Eis uma definição da craviola, nas palavras do inventor: “O som tem um sentido barroco, evocando ao mesmo tempo o lirismo da viola caipira e a luminosidade erudita do cravo”. Híbrido, o instrumento servia para tocar tanto Chopin quanto Beatles, segundo o músico argumentou ao apresentar do álbum Um Festival de Violão – O Novo Som de Paulinho Nogueira (1968). Ali estão, lado a lado, o “Prelúdio Nº 20” de Chopin, a “Malagueña” do cubano Ernesto Lecuona, o “Abismo de Rosas” de Canhoto e “Here, There and Everywhere”, de John Lennon e Paul McCartney.
Com discrição “nogueriana”, o livro Simplesmente investiga motivos possíveis para a presença tímida do artista nascido em Campinas no repertório, nos palcos e nos livros de história da música brasileira. Com sutileza, os autores levantam a hipótese de fundo na rixa imemorial entre Rio de Janeiro e São Paulo – Paulinho era de São Paulo, Baden Powell era do Rio, logo… Quem ajuda a consolidar a possibilidade é outro artista que na juventude foi muito próximo do violonista, quando morava em São Paulo: segundo o carioca Chico Buarque, nos anos 1960 havia uma “falsa rivalidade” entre Rio e São Paulo, e nessa levada Paulinho seria uma espécie de contraponto paulistano a Baden. Talvez não por acaso, o último trabalho lançado por Paulinhjo foi Chico Buarque – Primeiras Composições, no ano anterior à sua morte.
De fato, Paulinho agregou-se à seção paulistana da bossa nova – seu primeiro show profissional foi acompanhando Johnny Alf, carioca refugiado em São Paulo desde antes da eclosão do movimento. Nos anos 1960, Paulinho foi figura constante no programa televisivo O Fino da Bossa, comandado da capital paulista por Elis Regina e Jair Rodrigues. Por curiosidade, a única foto conhecida de Paulinho e Baden juntos foi tirada numa gravação d’O Fino da Bossa, e Martins e Nuzzi afirmam que Elis Regina ia incluir uma música de Paulinho, “Coração de Strass”, no repertório do histórico show Falso Brilhante – mas a versão “Fascinação”, sucesso antigo na voz de Francisco Alves, acabou tomando seu lugar. Foi mais uma façanha que Paulinho Nogueira não teve como colecionar.
No outro lado da ponte Rio-SP, Jacob do Bandolim chegou, segundo Simplesmente, a convocar os músicos cariocas a prestarem mais atenção na música do violonista paulistano. O nó não se desatou, até hoje. Inicialmente monopolizado por paulistas como Canhoto, Garoto, Dilermando Reis e Laurindo de Almeida, o violão instrumental fixou longa residência no Rio com Luiz Bonfá, Baden, João Bosco, o precoce Raphael Rabello… O livro explicita o baque sofrido pelo instrumento entre 1995 e 2003, com as mortes de Raphael Rabello, Baden, Luiz Bonfá e Paulinho.
Considerado um bossa-novista de primeira hora (seu primeiro LP saiu em 1958, simultâneo ao advento do também violonista João Gilberto), Paulinho Nogueira contou que chegou a ser convidado para o célebre concerto da bossa no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, mas acabou não indo. Escrevem seus biógrafos, roçando a rixa de levinho: “(Paulinho) nunca soube os motivos pelos quais não viajou. ‘Talvez por ser de São Paulo’, especulou em depoimento ao jornalista paranaense Aramis Millarch”. À revelia da fama de bossa-novista, Paulinho dizia-se anterior ao movimento. “Quando a bossa nova apareceu, eu já estava pronto”, afirmou.
Rixas à parte, um dos momentos de clímax musical de Paulinho Nogueira deu-se na releitura de “Samba em Prelúdio”, dos cariocas Baden Powell e Vinicius de Moraes, para o qual elaborou um arranjo “que até hoje deixa as pessoas assombradas”, nas palavras de Martins e Nuzzi. Paulinho tocava ao mesmo tempo duas linhas melódicas diferentes, cada uma numa mão ao violão, utilizando dez bilhões de neurônios para tocar.
Discretamente (para variar), algumas de suas composições instrumentais têm sido regravadas por violonistas diversos, caso de suas duas “Bachianinhas” (a primeira delas lançada inicialmente como “Samba no Céu”, em 1960, quando o próprio autor ainda não havia percebido que se inspirava em Bach), revividas sucessivamente pelos discípulos de primeira hora Toquinho e Eduardo Gudin, por Amilson Godoy, Badi Assad, Paulo Bellinati, Yamandu Costa…
Morador do bairro paulistano das Perdizes por quatro décadas, Paulinho Nogueira era apaixonado pelo vizinho Parque da Água Branca, que considerava sua segunda casa, e foi um militante aguerrido pelo tombamento do parque, que acabou acontecendo em 1996. Em 1983, lançou um disco chamado Água Branca; hoje, batiza uma alameda e um auditório dentro do parque, que ostenta também uma tímida tabuleta com a letra de sua canção “Parque da Água Branca”. Na ausência do patrono apaixonado, e apesar do tombamento, em 2022 o parque foi concedido à iniciativa privada, dentro de um processo desgovernado de privatização de espaços públicos paulistanos como o Parque Ibirapuera e o Vale do Anhangabaú. Ah, se todos usassem os dez bilhões de neurônios da cabeça de Paulinho Nogueira…























