Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 100 anos, em 20 de julho de 1925, nascia o filósofo, psiquiatra e militante anticolonial Frantz Omar Fanon, em Fort-de-France, capital da Martinica. A ilha caribenha, pisada em 1502 por Cristovão Colombo e colonizada pela França a partir de 1632, repetiu o curso histórico de muitos países da América: ocupada por uma potência colonial, teve a sua população indígena dizimada e foi povoada por europeus e africanos, estes últimos trazidos à força para o trabalho escravo nas lavouras. 

Quando Fanon veio ao mundo, sua terra natal ainda era oficialmente uma colônia francesa. Somente em 1946 o território martinicano foi declarado “departamento ultramarino insular”, sem nunca ter se tornado de fato independente. As chagas deste processo colonial marcariam para sempre o autor. 

Cena do filme 'A Batalha de Argel' (1966). <br> (Foto: Reprodução)

Cena do filme ‘A Batalha de Argel’ (1966).
(Foto: Reprodução)

Depois de completar os estudos iniciais na Martinica, Fanon serviu no Exército Francês Livre na Segunda Guerra Mundial. Após o fim do conflito, estudou na Universidade de Lyon, pela qual se formou médico psiquiatra. Vivendo como um negro antilhano na metrópole, notou os efeitos do colonialismo, do imperialismo e do racismo na psique humana, o que o levou a publicar uma de suas maiores obras: Pele negra, máscaras brancas (Peau noire, masques blancs), de 1952. 

No ano seguinte, mudou-se para Argélia, outra colônia francesa, onde atuaria até 1956 como chefe do departamento de psiquiatria do Hospital Blida-Joinville, na capital Argel. A cidade foi um dos principais focos da luta argelina contra o colonialismo francês, liderada pela Frente de Libertação Nacional (FLN).

E é aqui que o clássico A Batalha de Argel (La battaglia di Algeri), obra ítalo-argelina de 1966, dirigida pelo italiano Gillo Pontecorvo (Kapò, 1960, e Queimada, 1969), e a história de Fanon se cruzam. O filme, inspirado no neorealismo italiano por sua crueza estilística e o emprego de atores amadores, retrata os enfrentamentos urbanos da Guerra de Independência, no período de novembro de 1954 até dezembro de 1960. 

Como adianta o nome do longa, o campo de batalha foi Argel, capital apartada entre o Casbah, o distrito popular dos argelinos, e o belo Bairro Europeu, habitado pela elite colonial francesa. A divisão espacial, que lembra a de cidades brasileiras, refletia a estratificação social argelina. Como afirmou Fanon, “este mundo dividido em compartimentos, este mundo cindido em dois, é habitado por espécies diferentes” – colonos e colonizados, cuja relação relação tensa e explosiva é retratada no filme.

A principal inspiração de Pontecorvo foi Souvenirs de la Bataille d’Alger, livro de memórias de Saadi Yacef, chefe militar da FLN, interpretado por ele mesmo. Mas a obra cinematográfica também pode ser vista como um retrato magistral de outro grande livro fanoniano, Os Condenados da Terra (Les damnés de la terre), publicado em 1961. No último capítulo desta publicação, especialmente atordoante e intitulado “Guerra colonial e perturbações psicossomáticas”, Fanon se dedica a analisar os efeitos físicos e mentais da bestial repressão francesa contra a resistência argelina, a partir de notas dos atendimentos psiquiátricos de seus pacientes. 

Não só os colonizados, mas também os colonizadores eram afetados por aquele processo de despersonalização, em especial pelo uso sistemático da tortura: depressão, distúrbios motores, taquicardia, insônia, pesadelos, pensamentos violentos obsessivos e suicidas eram sintomas comuns a ambos.

A película, exibida num tom monocromático, escolha perfeita do diretor para expressar a frieza do embate anticolonial, abre com uma cena que poderia ter sido extraída de um destes relatos: um militante da FLN, visivelmente fragilizado e humilhado após longas horas sendo torturado, confessa o esconderijo de seus companheiros. “O pior já passou”, diz a ele o coronel Phillipe Mathieu (Jean Martin), personagem fictício que parece remeter a Jacques Massu, ex-comandante do exército francês em Argel e responsável por implementar métodos medievais na perseguição à resistência. Como sabia Fanon, o inferno não se limitava, na mente do colonizado, à sessão de tortura. Perturbado, o homem tenta se lançar pela janela, mas é impedido e levado para a invasão de Casbah, na busca por Ali La Point (Brahim Hagiag), personagem real e uma das principais lideranças da FLN. 

A caçada de La Point corre sob uma eletrificante música com tambores militares, composta pelo maestro Enio Morricone. Aqui, vale um aparte. O gênio das trilhas sonoras elaborou para A Batalha de Argel uma peça de arte por si só. Composições originais, músicas da época e efeitos sonoros se intercalam e se sobrepõem no preenchimento da trama, o que mantém o telespectador sempre atento. Os sons, escolhidos a dedo por Morricone, casam-se perfeitamente com a dramaticidade das cenas, com os movimentos rápidos de câmera e com os zooms de Pontecorvo nos rostos dos atores. 

Mas é especialmente comovente a peça orquestral que acompanha a retirada de crianças e de outros feridos dos escombros, no coração de Casbah, após a explosão de uma bomba francesa. Neste momento, o retrato da mais pura maldade de uma potência colonial contra uma população oprimida nos traz Gaza à mente. 

Em verdade, a obra como um todo nos lembra a resistência dos palestinos, ao ilustrar como a libertação de um povo da opressão colonial nunca se deu sem sacrifícios. Como retratado de forma inquietante no filme, décadas antes do Hamas surgir, a FLN já empregava táticas controversas, como a explosão de bares, cafés e restaurantes, abarrotados de civis. 

Lutando em condições extremamente desvantajosas, a resistência recorria a estas práticas como meio de ferir o coração do regime colonial: a falsa atmosfera de segurança dos colonos, que se sustenta sobre os corpos oprimidos dos colonizados. Ambos os grupos foram acusados de “terrorismo”. Já Fanon diria que, à fórmula dos colonos “todos os indígenas são iguais”, o colonizado apenas respondeu: “todos os colonos são iguais’”. 

E justamente porque a selvageria colonialista é horizontal, o filme é genial no retrato de como a luta anticolonial é genuinamente popular, isto é, de todo o povo colonizado, e não só do grupo político que assume a sua liderança. Homens, mulheres, idosos e crianças participam do enfrentamento contra a potência ocupante francesa. A resistência é apenas a encarnação da ideia de libertação, que está incutida nas massas colonizadas. E aí que está a maior fraqueza do poder colonial, muito bem descrita por Fanon: quando o povo colonizado se entende como força coletiva, e não mais apenas como um conjunto de indivíduos despersonalizados pelo colonizador, torna-se imbatível. 

Mesmo sendo um considerado um filme “cult”, A Batalha de Argel não é para círculos intelectuais. O longa foi vencedor do Leão de Ouro em Veneza e teve três indicações ao Oscar. Pontecorvo conseguiu este feito raro, de produzir uma obra original e inovadora em linguagem cinematográfica, mas com apelo de grande público. É um clássico que permanece atual. 

A tese do coronel Mathieu (que parece a mesma do genocida Netanyahu), de que a FLN era como uma tênia, que podia ser fulminada se cortada a sua cabeça, provou-se falsa. Como mostra o filme na inesquecível cena final, a frente argelina foi esmagada, mas a sua luta, não. Em 19 de março de 1962, o povo argelino se tornaria independente. Este dia chegará para a Palestina. 

(*) Susana Botár é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e doutoranda pelo mesmo programa.