Carrapatoso
Tia Ildelena disse que eu nem parecia caminhoneira e de todas as minhas amigas só a Zé mesmo que era a mais fanchona por causa do corte de cabelo
Quando fizeram a piada na roda de samba eu não resisti e postei no meu facebook, minha tia Ildelena leu e imediatamente o celular disparou aquele barulhozinho indefectível anunciando uma longa mensagem de áudio que eu só poderia ouvir depois de chegar em casa, ali pra além da meia-noite, no after da finda batucada, com o álcool batendo na borda do tutano e aquela alegria produzida um pouco pelas companhias, um pouco pelo repertório de Ivone Lara, um pouco pela beleza da noite que daquela vez estava precisa em seus contrastes de escuridão e fiapo de luz saído da lua a carregar no próprio corpo o semi-sorriso do gato de Alice, tão demasiadamente cínico como o meu coração às três da madrugada.
Aí pus o play no telemóvel e ouvi a voz esganiçada de tia Ildelena, sem complacência alguma, inquirindo por que a sobrinha, menina feita e bonita, já com trinta e um anos na cara, professora de adolescentes, escritora das páginas do jornal da província, miss caipira do Núcleo Pedagógico Integrado de 94 a 97, foi botar pra todo mundo ler que
|Os caminhoneiros estão em greve, mas as caminhoneiras não. Venham pras Sambadas!|
|É a boleia do samba!|
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Onde a sobrinha havia enfiado a cabeça de se chamar de caminhoneira em público? Tia Ildelena disse que eu nem parecia caminhoneira e de todas as minhas amigas só a Zé mesmo que era a mais fanchona por causa do corte de cabelo. Pra tia Ildelena eu sou feminina, tenho um gingado de mulher brasileira estilo vinheta de carnaval. Coitada.
Quando eu apareci com o Iuri em casa aos 16 anos, ela achou o máximo. Já estava de saída quando chegamos os dois de mãozinhas dadas, tímidos, do cinema. Abraçou o Iuri num orgulho que só faltou enfiar o moleque nas entranhas por osmose. Os dois até foram embora juntos porque eu queria mais era ficar um pouco longe dele pra poder conversar a sós com a minha mãe, precisava contar que eu tava mesmo era a fim de beijar a Carolina.
Reprodução

Pra tia Ildelena eu sou feminina, tenho um gingado de mulher brasileira estilo vinheta de carnaval. Coitada.

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Tia Ildelena jura de pé junto que eu não sei nada sobre sua história pregressa. Até parece que ela não conhece a irmã que possuía, minha mãe era uma portadora de fofocas de primeira grandeza e já me havia contado, ali no início de minha mocidade independente de qualquer padre miguel, sobre as incursões de tia Ildelena no mundo lésbico.
Narrou aquela vez em que minha avó a mandou pra Belém passar as férias com nossos tios pentecostalistas e ela fugiu pra casa da prima Joana, essa que também não era santa como a mulher estampada no vidro da colônia de alfazema que usava para se perfumar toda depois de velha.
Prima Joana enfiou tia Ildelena em um casarão na Campina onde umas amigas suas moravam juntas. Minha avó demorou pra aceitar a ideia, mas acabou cedendo depois de calcular os benefícios do investimento naquela distância necessária da filha que entre as cinco era a de espírito mais endiabrado.
Anos mais tarde tia Ildelena conheceu o tio Eduardo, diz que se apaixonou, aceitou o casamento, regulamentou tudo de papel passado em cartório e nunca mais rebuceteio.
Mas nunca vou me esquecer do episódio em que minha avó ligou para saber como estava a temporada da tia Ildelena no Pará. Ela só atendeu do quarto depois que uma das meninas sinalizou tratar-se de interurbano. Tia Ildelena respondeu à vovó que andava tudo bem e que as mulheres todas ali se amavam de tal maneira que até tinham apelidado a casa de Carrapatoso que – quem mora em Belém sabe – é há décadas a sapataria mais famosa da cidade.























