Gestão da pandemia será fator decisivo nas próximas eleições na América Latina, diz Moisés Marques
No dia 11 de abril, eleitores do Chile vão às urnas para decidir sobre a Convenção Constituinte; Equador e Peru escolhem próximos presidentes
Há mais de um ano, 192 países do mundo registram casos e mortes diárias pelo novo coronavírus. Segundo dados da Universidade Johns Hopkins, mais de 120 milhões de pessoas já se contaminaram com o vírus, que deixou, até esta quarta-feira (17/03), mais de duas milhões de vítimas. Na América Latina, o quadro não é diferente. Países como Brasil, Colômbia, Argentina, México e Peru estão entre as 20 nações do mundo com mais contaminações contabilizadas. Situações como essas e as políticas para conter os casos, em época de eleições, podem influenciar os resultados das votações.
Para o professor da Sociologia e Política – Escola de Humanidades (FESPSP) Moisés Marques, esse é o caso latino-americano, onde a gestão da pandemia do novo coronavírus pode ser um fator decisivo nas futuras eleições da região. Em entrevista a Opera Mundi, o docente disse acreditar que a pandemia seja, agora, uma das avaliações de programa entre um candidato e outro, algo que anteriormente não entrava na lista que era, classicamente, formada pelo binômio “segurança e economia”.
“Eu acredito que a questão maior que une todos esses países e que, talvez, decida em partes as eleições nesses próximos tempos é a gestão da pandemia do novo coronavírus. No caso, por exemplo, do Chile a impressão que dá é que é um país com uma melhor gestão da pandemia, vamos dizer assim, e isso pode, talvez, ajudar um pouco todo o processo de sucessão de Sebastian Piñera. Agora, ao contrário, por exemplo, no Equador. Teve uma péssima gestão do presidente Lenín Moreno, o que tornou ele tão impopular que nem para se candidatar ao segundo mandato tinha condições”, disse.
A declaração de Marques se dá pensando no dia 11 de abril, data em que eleitores do Chile, Equador e Peru vão às urnas escolher seus próximos representantes.
Será um domingo agitado para a América Latina, quando os chilenos irão eleger os 155 deputados para a Convenção Constituinte, que terá até 2022 para apresentar uma nova Carta Magna ao país. A Assembleia Constituinte foi aprovada em outubro de 2020 por ampla maioria no país. A nova carta irá substituir a atualmente em vigor – feita ainda na ditadura de Augusto Pinochet, em 1980.
No caso de Peru e Equador, os eleitores escolhem o próximo presidente. Os equatorianos voltam às urnas para decidir entre Andrés Arauz, da coalizão progressista União Pela Esperança (Unes), e Guillermo Lasso, do partido de direita Movimento CREO, que se enfrentam em segundo turno. Arauz saiu vitorioso no primeiro turno e esperou mais de uma semana para conhecer seu adversário, já que a disputa pela segunda vaga foi definida por uma diferença mínima entre Lasso e Yaku Pérez, candidato pelo partido indígena Pachakutik.
Ao contrário do Equador, o domingo de eleição no Peru marca o primeiro turno que irá definir o sucessor do presidente interino Francisco Sagasti, que não concorrerá ao cargo, além de renovar o Congresso peruano. A crise política no país se aprofundou após o afastamento de Martín Vizcarra do poder, e dois presidentes, em menos de dez dias, assumirem o posto.
O professor da FESPSP acredita que, a depender dos resultados dos pleitos, há “grandes chances” de grupos progressistas voltarem ao poder na região e ocorrer uma “virada” ideológica na América Latina. “Acredito que pode ocorrer essa virada progressista desde que haja uma convergência entre discurso, o voto e o que ocorrer a partir da pandemia”, afirmou o professor.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: No dia 11 de abril, Chile, Peru e Equador têm eleições marcadas para constituinte e presidenciais. O que está em jogo nesses pleitos?
Moisés Marques: Eu acredito que a questão maior que une todos esses países e que, talvez, decida em partes as eleições nesses próximos tempos é a gestão da pandemia do novo coronavírus. No caso do Chile, a impressão que dá é que é um país com uma melhor gestão da pandemia, vamos dizer assim, e isso pode, talvez, ajudar um pouco todo o processo de sucessão de Sebastián Piñera. Agora, ao contrário, por exemplo, no Equador. Teve uma péssima gestão do presidente Lenín Moreno, o que tornou ele tão impopular que nem para se candidatar ao segundo mandato tinha condições. Acredito que essa seja a primeira grande questão. E me parece que isso está decidindo uma série de eleições, vide a saída de Donald Trump, nos Estados Unidos, que, de certa forma, tinha todos os erros do republicano, mas ele teria alguma chance se não fosse a má gestão da pandemia. Tanto é que ele ressuscitou Joe Biden, que estava morto politicamente e acabou ganhando dele. A grande questão, nesse contexto, é a gestão da pandemia.
Em segundo lugar, um pouco derivado disso, é a gestão da economia. Temos países que têm uma dinâmica econômica mais organizada, caso do Chile, por exemplo. E têm países que tiveram problemas sérios economicamente nos últimos tempos. Então, essas duas coisas acabam determinando um pouco.
O mais emblemático disso tudo é o caso de El Salvador. Quando o Nayib Bukele ganhou a eleição em 2019, o que era estranho era um cara propondo algo que não era nem esquerda, nem direita. Aliás, isso está começando a aparecer também. Na eleição do Uruguai, em 2018, apareceu um candidato, que teve chances, e tinha esse discurso de nem esquerda e nem direita, eu não sou um político, o que importa é a eficácia… Eu acho que isso vai aparecer bastante. E é muito ruim para o processo democrático, pois você abre mão da disputa política e ideológica para algo que desqualifica o jogo político, que fala: olha, teremos uma gestão eficaz e acabou.
A vitória nas eleições legislativas em El Salvador do grupo de Bukele é paradigmático, pois ele fala assim: se eu fosse um político tradicional não teria feito um hospital em pouco tempo. E isso é mais ou menos o que o Piñera fala, embora não seja com esse discurso, o que é meio preocupante. Está ganhando força esse discurso de que não é necessário ser pelos meios tradicionais a disputa política e que, desde que a situação resolva, tanto faz o meio. Aí aparecem aberrações, tipo Jair Bolsonaro.
Esse discurso não é novo. Há 30 anos eu já ouvia isso e alguns analistas falavam do governo ser uma empresa, mas não é. Essas coisas reaparecem de vez em quando. Em épocas de crises da democracia, ela tem acolhidos esses personagens.

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Enquanto chilenos elegem deputados constituintes, eleitores do Peru e Equador definem próximos presidentes
A depender dos resultados desses pleitos, como pode ficar o cenário político na região?
Acredito que o que acontece na América Latina é uma inversão do que aconteceu há alguns anos. Tínhamos governos populares, não vou dizer necessariamente de esquerda, mas populares no Brasil, na Argentina, Uruguai, no Chile, na Bolívia, na Venezuela e no Equador. A América Latina estava amparada de governos populares. O que aconteceu nos últimos tempos é uma coisa que às vezes acontece por aqui, pois a região sempre se pautou por uma coisa meio pendular entre esquerda e direita. O que eu acho que está acontecendo, agora, é um pouco diferente disso, é uma coisa um pouco pragmática. Estamos tendo governos que não conseguimos classificar.
O que acontece na América Latina, e que, dependendo desses resultados, isso pode se acentuar, é um descrédito da democracia no mundo, uma crise, e o eleitor foge um pouco dessa coisa de esquerda e direita, ele vai para o lado que, para ele, represente um ganho.
Há um campo aberto para isso, pois se analisarmos as últimos edições do Latinobarómetro Database, ferramenta chilena que mede o grau de democracia na América Latina, acho que a gente nunca esteve tão baixo como nos últimos tempos. Então, se medirmos valores da opinião pública, é mais ou menos um binômio entre economia e segurança. Agora nós temos um terceiro que também pode entrar nesse amalgamo que é a gestão da pandemia. O eleitor vem escolhendo aquele candidato que parece ter mais facilidade, na visão dele, que passa uma mensagem que resolveria tal situação.
Na minha percepção, o que está acontecendo é que tem um grupo decidindo essas eleições, que é um eleitorado relativamente jovem, periférico e que tem laços de religiosidade. E isso tem a ver com precarização do trabalho. O eleitor está ali na periferia, sofrendo a violência, a religião é uma saída e o emprego que ele tem é a uberização. Ele olha para isso e vai eleger quem promete mais rapidamente. Isso é ruim para a democracia. É ruim o eleitor raciocinar assim. Porque ele deixa de lado todo o histórico, mas acho que isso está acontecendo.
Então eu não sei se é uma virada esquerda ou direita. Acredito que o que está acontecendo na América Latina é um descrédito da democracia, um déficit de governabilidade e uma busca por candidatos que prometem por curto prazo, pois isso dá um imediatismo no voto.
Na sua avaliação, a ala progressista latino-americana pode sair fortalecida nessas eleições?
Depende do que chamamos de ala progressista. Eu não saberia dizer, pois depende do que a gente chama de progressistas também, se isso é uma guinada. O que está ocorrendo é que há uma chance de grupos mais progressistas voltarem ao poder, algo que parecia sepultado há dois ou três anos. O paradigma disso é a eleição na Bolívia, pois teve todo o golpe e conseguiram eleger o candidato do Movimento ao Socialismo. Mas, em geral, esses progressistas tem vindo com um discurso um pouco mais suave, para tentar dar uma leve caminhada para o centro, pois eles precisam desses votos.
Então, acredito que pode ocorrer essa virada progressista, desde que haja uma convergência entre esse discurso, o voto de centro-esquerda e o que ocorrer a partir da pandemia. Estamos fazendo um ano de pandemia, e aqueles que acharam que teria uma saída rápida não encontram. Então, isso vai depender um pouco do cenário, pois se ele for devastador pode acontecer essa virada, caso contrário, temos que observar como se dará as alianças.
No caso do Equador é o segundo turno presidencial. O primeiro foi marcado pela demora da resolução de quem ocuparia a segunda vaga, tiveram também acusações de fraudes e pedidos de recontagem de votos. O clima eleitoral parece ainda estar quente. O que podemos esperar dessa segunda etapa?
Depende da capacidade deles se unirem. Temos dois países na América Latina que o movimento indígena decide totalmente as eleições, a Bolívia e a Guatemala. Aqui no Equador, a população indígena é bem menor, algo em torno de 10%. Então, teve uma gritaria, pois o Pérez teve quase 20% dos votos, uma diferença pequena em relação ao Lasso.
Acredito que, a depender das alianças, o clima pode pesar ou não. Tudo indica que, pelo menos agora, que as chances são maiores da esquerda levar, o Arauz. Apesar das denúncias de supostas fraudes, dá a impressão de que o pleito vai caminhar. Se somar os votos do Pérez e do Arauz há uma grande chance da esquerda vencer. Agora, há diferenças entre eles, coisas antigas. À princípio, dá para imaginar que será uma eleição razoável.
Há chances de Yaku Pérez se aliar ao Andrés Arauz?
Acho difícil, quase impossível que isso aconteça. O que pode acontecer é você criar um vácuo. A minha percepção é que, talvez, o grupo do Yaku Pérez seja um pouco na linha de não apoiar nenhum dos lados. E, nesse sentido, se não tiver um apoio forte pode criar um problema para a eleição do Arauz, pois o Lasso está buscando tudo que não for do Yaku Pérez como apoio.
Quando se tem interesses em jogo, interesses antigos, é muito difícil você ter certeza de quem joga com quem, mesmo faltando pouco tempo para as eleições.
O Peru também elege seu próximo presidente dia 11. O país viveu uma instabilidade político tendo três presidentes em uma semana. E, agora, teve escândalo de vacinação para grupos seletos. Quanto o tema da covid-19 pode alterar o jogo político por la?
O Peru vem mal politicamente há um tempo, mas economicamente não. Se pensarmos nos últimos presidentes: Alejandro Toledo está preso; Alan García se suicidou pois seria preso; Ollanta Humala prisão domiciliar; o próprio Pedro Pablo Kuczynski está preso e destituído, e Martín Vizcarra com processos de impeachment. O Peru é um caso incrível de resiliência política a despeito da falência do sistema presidencialista peruano. Então, muito dificilmente vai piorar de como já está.
O Peru foi uma das piores gestões da pandemia. No começo, quando acompanhávamos os mapas da Universidade Johns Hopkins sobre a covid-19, via o país aparecendo entre o sexto, sétimo lugar, mas o Peru não tem uma população para aparecer entre os maiores casos de covid do mundo. Horrível, tanto Peru quanto Equador.
O que irá acontecer ali é afetar novamente a população no sentido de ter maior descrédito em relação à classe política. E ai temos um perigo, um perigo da má gestão da pandemia ligada a um período em que a democracia já não vinha bem. Esse cenário abre muito espaço para aventuras. Há 32 anos, a aventura se chamava Alberto Fujimori, ele derrotou o Vargas Llosa, um ilustre desconhecido que ganhou do Llosa.
No caso do Peru, eu acredito, que o grande perigo é esse: abertura de espaço para coisas absurdas. Aparecer candidatos sem nenhuma vinculação com nada, prometendo mudar tudo e ganhar a eleição. Acredito que ali o risco é esse.
O Chile vota para eleger 155 constituintes que deverão escrever a nova Carta Magna do país. Com a vacinação contra a covid-19, a aprovação de Sebastián Piñera subiu. Esse número pode de alguma forma influenciar no domingo de eleição?
Acredito que o Piñera era quase um peso morto nessa eleição, mas, por conta da gestão da pandemia, aparentemente, ele renasce, não completamente, mas ele ganha uma sobrevida. E nisso eu acredito que terá uma influência sim nas candidaturas próximas a ele. Não acho que seja a ponto de ser uma grande vitória. Acredito que será uma melhora em uma situação que era caótica para o grupo político dele.
Tem um problema gravíssimo que ficou claro há quase dois anos com as pessoas indo para às ruas, porque o Chile não é um país federativo, é um país centralizado. A Presidência da República até pouco tempo decidia até o valor da passagem do transporte de Santigo, por exemplo. Então, quando as manifestações foram para às ruas mostrou uma cara do Chile que poucas pessoas conheciam: um Chile que muitas decisões são burocráticas. O país terá algumas mudanças nos próximos tempos. Agora, eu descarto de cara a possiblidade de uma grande mudança de aventuras no Chile, porque, mesmo quando a direita governa, como o Piñera, ela governa respeitando um pouco o jogo democrático. Há um jogo de um certo respeito.
Talvez o grupo político do Piñera tenha ganhado uma sobrevida, mas isso não altera tanto assim o jogo. Me parece que o que está sendo separado na América Latina, agora, é quem é democrata de quem não é. De quem joga o jogo, respeitando caso perca ou não, de quem não respeita.
Há uma força evangélica nessas eleições latino-americanas?
Acredito que sim. O caso do Brasil é o mais paradigmático nesse sentido. Se pegar 1989, a gente tinha 7% ou 8% que se declarava evangélico no país. Não tivemos o censo de 2020, mas fala-se que está chegando a 30%. Isso é uma força imensa. O golpe de Estado na Bolívia foi basicamente um golpe evangélico. Os evangélicos cresceram muito no Paraguai e na Guatemala. E nada contra o grupo evangélico, mas o problema é que, em geral, as lideranças evangélicas se moldam a grupos políticos e conseguem carrear os votos dos seus liderados para esses grupos. Há um crescimento desse grupo na região como um todo. E esse grupo tem projetos políticos, não há dúvidas disso. Teremos problemas em um curto prazo com isso.























