Em eleição histórica, o Chile rejeitou neste domingo (04/09), por esmagadora maioria de 61,9%, a proposta do texto constitucional que substituiria a atual Carta Magna, promulgada em 1980 e herança da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
É o desfecho de um processo iniciado em outubro de 2019, quando dezenas de milhares de chilenos tomaram as ruas para demonstrar sua insatisfação com o governo e as condições de vida no país. O movimento desembocou em um plebiscito um ano depois, em que 78,3% votaram pela elaboração de uma nova Constituição e 79% apoiaram a criação de uma Assembleia Constituinte para este fim.
Embora a reprovação do texto já fosse esperada – pesquisas de opinião indicavam favoritismo do “não” –, o resultado numérico – 7,8 milhões – surpreendeu a especialista em processos constitucionais Ester Rizzi, que acompanhou o caso chileno de perto e falou de Santiago à DW Brasil.
Professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Rizzi atribui a derrota – uma “ressaca” e “tragédia política”, nas palavras dela – a um processo de construção de legitimidade falho, causado por um calendário de trabalhos apertado e inexistência de plebiscitos intermediários, que dariam maior respaldo popular ao texto.
“A ideia de um plebiscito final já torna difícil a aprovação do texto. É difícil gostar dele inteiro, nos seus detalhes”, pontua.
Ela discorda, contudo, que a reprovação popular ao texto seja um sinal de que a esquerda chilena esteja descolada da realidade. “O quórum de aprovação era muito alto, houve negociações para conseguir aprovar os textos”, afirma.
Entusiasta da proposta constitucional, Rizzi aponta ainda campanhas de desinformação e os dois anos decorridos entre os protestos e a apresentação do texto como fatores adicionais que podem ter levado à rejeição.
Segundo ela, o presidente Gabriel Boric terá dias difíceis pela frente. “Muita energia política foi investida nesse processo, e isso de alguma forma se perde”, lamenta. “O processo está no início de novo. Não está nem certo se uma nova Constituição existirá.”
DW Brasil: O resultado do plebiscito constitucional surpreende ou já era esperado?
Ester Rizzi: O que surpreende, talvez mais do que o resultado, é a margem. Foram 61,9% contrários, uma votação histórica na maior eleição chilena [diferentemente de votações anteriores, desta vez o comparecimento às urnas era obrigatório].
O resultado não é exatamente uma surpresa. A impressão que se tinha é que o “aprovo” estava numa ascendente, com chance de passar. Embora as pesquisas apontassem desde maio a vitória do “rejeito”, tinha lá uma margem. E essa margem vinha diminuindo, então tinha uma esperança.
Não seria um indício de que talvez a esquerda esteja um pouco descolada da realidade?
A esquerda no Chile são vários grupos. Eles estão em disputa, têm muitas nuances. Seria injusto afirmar isso. Acho que [o resultado] tem a ver com não se ter construído legitimidade para esse texto constitucional ao longo do processo. E tem razões de desenho institucional para isso. A ideia de um plebiscito final já torna difícil a aprovação do texto. É difícil gostar dele inteiro, nos seus detalhes.
No regimento da Convenção Constituinte havia a previsão de um plebiscito intermediário que trataria de temas que não tivessem obtido dois terços dos votos, que era o quórum para aprovação, mas tivessem obtido três quintos. Teria sido uma boa ideia, porque aquece o debate e aumenta a legitimidade. Mas eles queriam cumprir o prazo de um ano que estava previsto no acordo de 2019, por isso não deu tempo de fazer esse plebiscito intermediário.
Como o quórum de aprovação era muito alto, houve negociações para conseguir aprovar os textos. A proposta não está descolada da realidade, mas faltou construir processos de legitimação.
Por que, em um país onde quase 80% da população votou por uma nova Constituição, a proposta foi rejeitada pela maioria?
A passagem do tempo pode ter esfriado esse impulso. O processo da Convenção Constitucional também foi muito ensimesmado – eles fizeram um procedimento, talvez, muito disciplinado e pouco político, com pouco diálogo com a sociedade.
Tem muita coisa bonita no texto, a começar por chamar o Chile de Estado social democrático de direito, a paridade de gênero, os direitos sociais, direito à saúde, educação, previdência, assistência, a proteção do meio ambiente.
Eu não culparia o texto. Ele é bastante democrático, mas criou-se uma narrativa de relação com ditaduras de esquerda. Tinha uma confusão com um autoritarismo, que não era o mesmo do Pinochet. Foi dito que o país iria virar uma Chilenzuela [alusão à Venezuela]. De alguma forma, eles conseguiram associar essa nova Constituição a um processo autoritário, inclusive usando a estética do “Não”, a campanha para o plebiscito de 1988 que pôs fim ao governo Pinochet.
Tinha também uma coisa de achar que a Constituição dividia as pessoas, punha em risco a unidade do Chile. Outra ideia que pegou é a de que essa Convenção Constitucional era incompetente. A mensagem da campanha contra não era “não queremos uma nova Constituição”, era “essa Constituição não é a nossa”. Não é uma contradição.
O que o resultado de hoje representa para a sociedade chilena?
Acho que é uma tragédia política. Deixa o governo Boric e o Chile numa situação bastante difícil. Muita energia política foi investida nesse processo, e isso de alguma forma se perde.
























