Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Enquanto Israel lançava, em 2014, um ataque mortal contra Gaza, matando milhares de civis e deslocando mais de 100 mil pessoas, Hollywood e muitos dos principais produtores de televisão, música e cinema dos Estados Unidos se organizavam para proteger a reputação do regime de apartheid da condenação internacional generalizada.

O chamado Arquivo Sony — um conjunto de e-mails publicados pelo WikiLeaks — demonstra que magnatas influentes do entretenimento dos EUA tentaram encobrir os crimes israelenses e apresentar a situação como uma defesa contra um “genocídio” iminente, entraram em contato com militares e funcionários do regime israelense para coordenar sua mensagem, tentaram silenciar aqueles que se pronunciaram contra a injustiça e exerceram pressão financeira e social sobre as instituições simpáticas a artistas que criticavam as ações do regime do apartheid.

Quando Israel ataca, Hollywood fica na defensiva

“[A mensagem de Israel] deve ser repetida infinitamente até que as pessoas entendam”, escreveu o advogado e produtor de Hollywood Glenn D. Feig em uma corrente de e-mails dirigida a muitos dos executivos mais influentes da cidade do cinema. Isso foi em resposta ao ataque israelense de 2014 contra Gaza, um dos capítulos mais sangrentos em mais de meio século de ocupação.

Sob o nome de “Operação Margem Protetora”, o exército israelense realizou sete semanas de bombardeios quase constantes sobre a densamente povoada faixa costeira. De acordo com as Nações Unidas, mais de 2.000 pessoas perderam a vida, um quarto delas crianças; 18 mil casas foram destruídas, deixando mais de 100 mil pessoas desabrigadas.

O exército israelense atacou deliberadamente infraestruturas civis, destruindo a única central elétrica de Gaza e fechando suas instalações de tratamento de água, o que causou devastação econômica, social e ecológica em uma área que a Human Rights Watch classificou como a maior “prisão a céu aberto” do mundo.

Muitos em Hollywood expressaram sua profunda preocupação. “Devemos garantir que isso não aconteça novamente”, insistiu o produtor Ron Rotholz. No entanto, Rotholz não se referia à morte e destruição que Israel infligiu a Gaza, mas ao fato de que muitas das maiores estrelas do mundo do entretenimento, incluindo o famoso casal formado por Penélope Cruz e Javier Bardem, condenaram as ações de Israel, classificando-as como “genocídio”.

“A mudança deve começar de cima. Deveria ser inaudito e inaceitável que qualquer ator vencedor do Oscar classificasse a legítima defesa armada do próprio território como genocídio”, continuou ele, preocupado com o fato de que o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), uma campanha mundial para exercer pressão econômica sobre Israel a fim de obrigá-lo a cumprir suas obrigações nos termos do direito internacional, estivesse ganhando força no mundo das artes. A legitimidade de Israel baseia-se no apoio político e militar dos EUA. Portanto, manter o apoio do público estadunidense é crucial para a viabilidade a longo prazo de seu projeto colonialista.

Rotholz tentou então organizar uma campanha silenciosa de pressão mundial sobre salas e organizações artísticas, incluindo a Academia de Cinema de Hollywood e os festivais de cinema de Sundance e Cannes, para acabar com o BDS, escrevendo:

“O que podemos fazer é exortar os líderes das principais organizações de cinema, televisão e teatro, festivais, mercados e, potencialmente, os diretores das empresas de mídia a emitir declarações oficiais condenando qualquer forma de boicote cultural ou econômico contra Israel”.

Outros concordaram que precisavam desenvolver um “plano de ação” para se opor ao BDS.

É claro que, quando produtores influentes, festivais e diretores de corporações de mídia emitem comunicados condenando uma determinada postura ou prática, isso representa, na prática, uma ameaça: pare de adotar essas posturas ou sofrerá as consequências profissionais.

Ken Loach na mira

Os e-mails da Sony também revelam uma obsessão quase doentia pelo cineasta e ativista social britânico Ken Loach. Um dos filmes do famoso diretor, Jimmy’s Hall – Uma História de Amor e Liberdade (2014), havia sido recentemente indicado ao prestigioso prêmio Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes e, após o ataque de Israel a Gaza, ele havia pedido publicamente um boicote cultural e esportivo ao regime de apartheid.

Os e-mails da Sony revelam obsessão quase doentia de Hollywood pelo cineasta e ativista social britânico Ken Loach</span>, diretor de "Jimmy's Hall"(Foto: Chris Payne/Flickr)

Os e-mails da Sony revelam obsessão quase doentia de Hollywood pelo cineasta e ativista social britânico Ken Loach, diretor de “Jimmy’s Hall” (Foto: Chris Payne/Flickr)

Isso indignou muitos em Hollywood. Ryan Kavanaugh, diretor-executivo da Relativity Media, uma produtora cinematográfica responsável pelo financiamento de mais de 200 filmes, exigiu que não apenas Loach fosse cancelado, mas todo o Festival de Cinema de Cannes. “Os estúdios e as emissoras devem se unir e boicotar Cannes”, escreveu ele. “Se não o fizermos, estaremos enviando a mensagem de que Hollywood não tem nenhum problema com outro holocausto, desde que não afete seus negócios”, acrescentou, apresentando o ataque israelense contra uma população civil quase indefesa como um genocídio palestino contra os israelenses.

Outros concordaram. Ben Silverman, ex-copresidente da NBC Entertainment e da Universal Media Studios e produtor de programas como O Escritório (The Office), O Grande Perdedor (The Big Loser) e Feia Demais (Ugly Betty) disse que a indústria deveria “boicotar os boicotadores”. Rotholz, por sua vez, escreveu ao diretor do Festival de Cinema de Cannes exigindo que ele tomasse medidas contra Loach por seus comentários. “Não há lugar para [os comentários intolerantes e odiosos de Loach] no mundo global do cinema e dos cineastas”, insistiu.

Outros propuseram outra forma de contrariar Loach. “Que tal nos unirmos todos e fazermos um documentário sobre o aumento do novo antissemitismo na Europa?”, sugeriu o produtor de cinema britânico Cassian Elwes, acrescentando: “Eu estaria disposto a contribuir e dedicar meu tempo se os outros fizessem o mesmo. Entre todos, tenho certeza de que poderíamos encontrar uma maneira de distribuí-lo e levá-lo a lugares como Cannes para poder responder a tipos como Loach. Talvez pudéssemos usá-lo para conseguir o apoio das comunidades cinematográficas europeias para nos ajudar a distribuí-lo lá”.

“Adorei”, respondeu o magnata editorial Jason Binn. “E vou promovê-lo amplamente entre os 3,2 milhões de assinantes de revistas em todas as plataformas online e offline. Posso até aproveitar os 9 milhões de membros do Gilt”, acrescentou, referindo-se ao site de compras e estilo de vida que administrava.

“Eu também”, disse Amy Pascal, copresidente da Sony Pictures Entertainment. Enquanto isso, Mark Canton, produtor de filmes como Carter, o Vingador (Get Carter), Imortais (Immortals) e 300, se empenhava em conseguir mais apoio de Hollywood para a ideia. “Vamos adicionar Carmi Zlotnik a essa lista cada vez maior”, respondeu, referindo-se ao executivo de televisão.

Toda essa correspondência veio de uma lista de e-mails de dezenas de figuras influentes do mundo do entretenimento intitulada “Feliz Ano Novo. Pena que a Alemanha agora é uma zona proibida para judeus”, na qual se afirmava ridiculamente que o país europeu havia se tornado uma teocracia islâmica controlada por muçulmanos.

“É horrível. Mas, no fim das contas, não é nenhuma surpresa, porque os defensores da opressão de Israel sobre os palestinos farão tudo o que puderem para impedir que as pessoas se oponham a eles”, disse Loach quando a MintPress pediu sua opinião. “Não devemos subestimar o ódio daqueles que não podem tolerar a ideia de que os palestinos tenham direitos humanos, que a Palestina seja um Estado e que eles tenham seu próprio país”, acrescentou.

Censura à liberdade de expressão

O grupo pró-Israel de Hollywood também exerceu forte pressão sobre as instituições americanas para que tomassem medidas drásticas contra o apoio aos direitos humanos dos palestinos. Ben Silverman revelou que havia escrito a Peter Gelb, diretor-geral da Metropolitan Opera House de Nova York, numa tentativa de impedir a representação de A Morte de Klinghoffer, uma ópera que narra a história do sequestro de um avião comercial pela Frente de Libertação da Palestina em 1985.

“Sugiro que cada um de nós ligue na segunda-feira para o escritório dele no Met, e sua observação sobre a influência dos doadores do Met é importante”, aconselhou aos outros oligarcas do mundo do entretenimento, revelando assim como os poderosos agem secretamente para silenciar as opiniões que não aprovam e como usam sua influência financeira para coagir e obrigar outros a seguirem sua linha. Era necessário exercer muita pressão porque, segundo a explicação de Silverman, “como membros da comunidade artística, é muito difícil ser a favor da liberdade de expressão apenas algumas vezes e não sempre”.

No final, a apresentação foi realizada, mas não sem um grande protesto coordenado tanto dentro quanto fora do Lincoln Center for Performing Arts, já que algumas pessoas tentaram impedi-la alegando que era “anti-semita”.

Em contato com o exército de Israel

As conversas por e-mail de muitas das pessoas mais influentes de Hollywood mostram que elas acreditam estar à beira de um extermínio mundial dos judeus e que Israel — e elas mesmas — são os únicos que se interpõem no caminho desse destino iminente. Como escreveu Kavanaugh: “É nosso trabalho evitar que outro holocausto aconteça. Muitos de vocês podem pensar que isso não pode acontecer, que é extremo… [mas] se lerem os jornais anteriores ao holocausto, parece assustadoramente semelhante ao nosso mundo atual”.

Rotholz era da mesma opinião e escreveu: “É imperativo que as figuras proeminentes das comunidades cinematográfica, televisiva, midiática, digital e teatral de Los Angeles e Nova York que apoiam um Estado judeu forte e poderoso desenvolvam uma estratégia para estabelecer laços com seus colegas de Londres e da Europa, bem como com as comunidades criativas daqui e da Europa, a fim de promover e explicar a causa israelense”.

Os e-mails do Arquivo Sony também mostram que os altos escalões hollywoodianos não apenas coordenavam estratégias para silenciar os críticos de Israel, mas também mantinham uma relação estreita com o regime israelense e seu exército.

O produtor George Pérez, por exemplo, enviou uma mensagem aos seus colegas na lista de e-mails para lhes apresentar um coronel das chamadas Forças de Defesa de Israel (FDI), afirmando: “Por favor, utilizem todos esta lista de “responder a todos” a partir de agora. Incluí Kobi Marom, um comandante reformado do exército israelense. Kobi teve a gentileza de oferecer a mim e à minha família um passeio de jipe pelas Colinas de Golã durante nossa viagem a Israel em junho. Ele também nos levou para visitar uma base militar na fronteira entre Israel e a Síria, uma área que tem sido notícia ultimamente. É difícil imaginar que os rapazes que conhecemos na base provavelmente estejam lutando contra nossos inimigos”.

Dado que a grande maioria dos mortos eram civis palestinos, não está claro se ele considera todos os palestinos inimigos de Hollywood ou apenas o Hamas. Pérez também observou que “Kobi colabora estreitamente com os Amigos das FDI, que precisam de doações”, e aconselhou que Hollywood deveria “esforçar-se ao máximo para ajudar na luta constante pela sobrevivência de Israel”.

O grupo também tentou recrutar a estrela de cinema israelense-estadunidense Natalie Portman para suas fileiras. Mas a atriz vencedora do Oscar parecia mais preocupada com o fato de que seus dados pessoais estavam sendo compartilhados. “Como é que cheguei a esta lista? Ryan Seacrest também está?”, respondeu ela, antes de se dirigir diretamente a Kavanaugh e escrever: “Pode me remover desta lista de e-mails? Não deveria enviar-me cópias públicas para que 20 pessoas que não conheço tenham as minhas informações pessoais. Agora vou ter de mudar o meu endereço de e-mail. Obrigada”.

Embora o desprezo aberto de Portman pelo grupo de produtores furiosamente pró-Israel seja notável, ainda mais notável foi a resposta de Kavanaugh, que revelou o quão estreita é a conexão entre o regime israelense e Hollywood. Kavanaugh respondeu: “Sinto muito. Você está certa, os judeus que são assassinados por suas crenças e os membros de Cannes que pedem boicote a tudo relacionado a Israel ou aos judeus são muito menos importantes do que o fato de seu endereço de e-mail ter sido compartilhado com 20 de nossos colegas que estão tentando fazer a diferença. Minhas sinceras desculpas… Ontem, almocei com o cônsul-geral de Israel, que me falou sobre a J Street [organização política estadunidense que defende uma abordagem diplomática para o conflito Israel-Palestina]. Ele ficou tão perplexo, confuso e preocupado quando soube que você os apoiava, que me implorou para colocá-los em contato”.

Assim, os e-mails vazados demonstram sem sombra de dúvida que tanto o regime israelense quanto as FDI colaboram com algumas das pessoas mais poderosas do mundo do entretenimento para promover uma mensagem pró-Israel e erradicar qualquer desvio dessa linha.

Rappers a favor do apartheid

Embora seus esforços para recrutar Natalie Portman tenham fracassado, uma estrela que respondeu com entusiasmo foi o megaprodutor de hip-hop Russell Simmons, fundador da Def Jam Records e irmão de Joseph “Rev. Run” Simmons, um dos três membros do grupo Run DMC.

Simmons foi recentemente alvo de controvérsia, depois que 20 mulheres o acusaram de estupro ou outras condutas sexuais inadequadas. E-mails revelam que promover o compromisso com Israel dentro da comunidade afro-americana é um dos principais interesses de Simmons.

Quando questionado se tinha alguma ideia sobre como melhorar a imagem de Israel, ele respondeu: “Mensagens simples de pessoas não judias, especificamente muçulmanas, que promovam a paz e o direito de Israel de existir… Temos os recursos e o desejo de conquistar, em vez de perder, os corações dos jovens muçulmanos e judeus”.

Ele explicou quais eram esses recursos: “Temos centenas de programas de colaboração entre imãs, rabinos e suas congregações. Contamos com muitos imãs respeitados que se uniriam ao ex-grão-rabino Metzker, ao rabino Schneier e a pessoas não judias para promover o plano de paz saudita”. E concluiu: “Por meio dessa campanha, ajudaremos Israel”.

Mudando o rumo

No entanto, apesar dos esforços de Russell Simmons e outros, a opinião pública estadunidense começou a se voltar contra Israel nos últimos anos. Os jovens, em particular, são mais propensos a simpatizar com a difícil situação do povo palestino e a apoiar um Estado palestino independente.

Muito disso tem a ver com o auge das redes sociais e uma nova geração de ativistas que quebra barreiras para destacar as injustiças cometidas pelo governo. Hoje, os norte-americanos estão mais propensos a ver em primeira mão relatos sem adornos sobre a brutalidade israelense nas plataformas de redes sociais. Como explicou o veterano Noam Chomsky à MintPress no ano passado, “o véu da intensa propaganda está se levantando lentamente, e a participação crucial dos EUA nos crimes israelenses também está se tornando mais evidente. Com um ativismo comprometido, isso poderia ter efeitos benéficos”.

No entanto, o apoio do governo estadunidense a Israel continua aumentando. Entre 2019 e 2028, os EUA devem enviar quase US$ 40 bilhões em ajuda, quase toda ela militar, o que significa que os fundos dos contribuintes norte-americanos estão contribuindo para a opressão e o deslocamento dos palestinos.

Ken Loach se mostrou ainda mais otimista sobre o assunto e disse-nos que aqueles que se interpõem no caminho da justiça serão julgados negativamente pela história: “A negação dos direitos humanos dos palestinos é um dos grandes crimes [da era moderna] e os direitos palestinos são uma das grandes causas do século passado e deste século. Todos nós devemos apoiar os palestinos. Se você se preocupa com os direitos humanos, não há dúvida: é preciso apoiar os palestinos. E aqueles que se opõem a eles, no final, desaparecerão. Porque a história mostrará que foi um crime terrível. Os palestinos sofreram uma limpeza étnica em sua terra natal. Temos que apoiar os palestinos, ponto final”.

No entanto, essas pessoas não têm intenção de “desaparecer” e continuam se organizando em nome do regime israelense. Graças aos documentos vazados, aqueles que se preocupam com a autodeterminação palestina têm uma ideia mais clara de como eles operam.